O sol da manhã ilumina a praia. Os ventos de São José da Coroa Grande empurram sem força, as ondas do mar azul que desfalecem na praia. A garota de nove anos tem compromisso e resiste ao aceno.  --- Siga caminho, Ana Ventura. Escuta o conselho na voz do vento.
            A escolha por fazer o que necessita ser feito, a conduz à rota das artes. Nesse dia aceita convite para uma apresentação de frevo. A coreografia de Evocação nᵒ1 do maestro Nelson Ferreira lhe abre o portal da dança. Dias antes do carnaval sai do clube local, coroada com uma boina.
            Aos doze anos se apresenta como pastora no cordão vermelho do pastoril da igreja do Espinheiro e ensina ao irmão e amigos, ritmos de danças de salão.
            A debutante e o namorado, futuro esposo, juntos em Fazenda Nova promovem bailes nas casas dos colegas. A vitrola portátil passeia por bares e pousadas. O hotel Botijinha cede ao encanto e modismo da época, o encontro de jovens, conhecido como “festa assustado”.
            A graduação em educação física inclui a dança. As colegas de turma reclamam enquanto ela se esforça e se inebria no deleite da harmonia dos movimentos do corpo associados à música. A alma se eleva e lhe transporta por planícies revestidas de linóleo verde em caminhadas, giros e pivôs. Na alternância de transferência de peso, ela flutua. Os amigos a seguem aos ensaios na quadra da escola Gigantes do Samba.
            Como educadora leciona em escolas públicas. O alunado abraça o desafio de apresentar coreografias de danças em datas comemorativas e finais de período letivo. Elogios e premiação se transformam em rotina na vida das crianças e currículo da professora.
            O caminhar na vida é montanhesco, há tempos para subida, topo e descida. É preciso o afastamento da dança, mas o sono da bela adormecida tem curta duração. A irmã Mabel vem lhe descobrir o véu do desencantamento.  Dias após, ela vai à escola Corpo & Expressão fazer aula experimental com o professor de danças André Felipe.
               Sente-se devolvida ao céu. A mulher de corpo abençoado, esguia, estatura acima da média, pernas alongadas, cabelos e olhos castanhos não passa despercebida da admiração e de um fio de inveja.
               É convidada a participar de coreografia de samba de gafieira com professora de dança Aneska. Aceita de pronto. Superada a jornada de ensaios, escolha de figurino e maquiagem, ela e o dançarino Luiz Sandes se apresentam com mais dois pares no clube dos Sargentos no bairro da Torre. Ecoa em sua mente as lembranças das palmas, abraços, risos, o sabor da vitória e o samba, jamais esquecidos.
            Dizem que os raios não caem num lugar duas vezes. Sou atingida. Dessa vez pelo acorde de violino em companhia do pulsar de bandoneon. É o tango argentino. A montanha russa dos sons que se deslocam em movimentos lentos e rápidos liquidificando paixão e ódio em dramaticidade.
               Observo as aulas através da vidraça. A atração se torna maior e peço permissão para entrar. Sensível ao meu interesse, o professor André Felipe me oferta um mês de aulas.
          Sou apanhada e não é possível a fuga. Preciso de aulas particulares e tonificar a musculatura. Decido cortar gastos e investir na dança, por realização pessoal e declaração de apreço pela ajuda recebida.
            As garras do tango se fecham sobre mim quando assisto à apresentação do professor Felipe num restaurante e sou convidada por ele a dançar no palco. A emoção me transporta à Bueno Aires. É o Festival Mundial de Tango. Aulas com professores nativos, bailes e Milongas e na volta, o convite para uma coreografia me leva ao palco do teatro Barreto Junior.
            Na plateia, os aplausos, a presença de Mabel e meus dois netos estudantes de direito coroam meus setenta anos e me impulsionam ao próximo desafio, uma coreografia de bolero. Assim, reforço meu escudo e alimento a alma, tornando-me rocha às tormentas da vida.