837-UMA HISTÓRIA DAS 1001 NOITES-Minhas Memórias
O prazer de ler é tão intenso em minha mente que posso me lembrar das emoções sentidas (e senti-las novamente) quando li as primeiras histórias de fadas, duendes, bruxas e princesas encantadas, bem como dos gibis, com histórias em quadrinhos de heróis e suas lindas companheiras de aventuras, enfrentando vilões, nazistas, seres de outros planetas ou dos tempos da pré-história. Gibis e livros de histórias infantis apareceram ao mesmo tempo em minha infância e minha mente fervilhava com tanta aventura!
Durante os quatro anos do ensino primário os livros da biblioteca do grupo escolar me satisfizeram, e os gibis emprestados pelos amiguinhos da vizinhança me deixavam vibrando. Eu tinha três livros: Ursão, As Aventuras do Aviãozinho Vermelho (Érico Veríssimo), e Dom Quixote para Crianças, de Monteiro Lobato. Possuía meia dúzia de gibis, que trocava com os amiguinhos do quarteirão.
Quando fui para o ginásio, “novos horizontes literários” se desdobraram na minha existência. Uma COLEÇÃO TERRAMAREAR completa era a preciosidade da “Biblioteca dos Internos”, ou seja, só para empréstimos aos alunos do internato. Mas consegui com o Irmão Germano, que mantinha o armário com a coleção trancado sob sete chaves, que pudesse lê-los nas férias, mediante aluguel por volume retirado pelo tempo de uma semana.
Deitei e rolei nas leituras das aventuras de Tarzan, dos heróis de Emilio Salgari, Rudyard Kipling, Julio Verne, Mark Twain, Jack London e muitos outros.
Então apenas ler já não me satisfazia totalmente. Queria ter livros para ler quantas vezes quisesse, devagar ou rapidamente, sem tempo marcado para devolver o volume.
Entretanto, dinheiro para comprar livros, na minha família, nem pensar. A renda de papai na sua marcenaria era o suficiente para a sobrevivência. Foi então que uma nova maravilha aconteceu em minha vida!
O Sistema de privilégios e faltas no Ginásio Paraisense
Para compreensão dessa etapa sensacional, tenho de fazer uma digressão sobre o sistema disciplinar do Ginásio Paraisense, onde estudei os quatro anos de ginásio, anos de 1947 a 1950. .
O Ginásio Paraisense era dirigido pelos Irmãos Lassalistas, oriundos do Rio Grande do Sul, que traziam um engenhoso sistema disciplinar.
O sistema de recompensa por boas notas era feito através de distribuição de “privilégios” – pequenos cupons coloridos com indicação de valores: 1, 2 e 3, e até 5 pontos.
Explico melhor: por uma nota 10 numa prova, o aluno recebia um privilégio de 1 ponto. Por alguma atividade mais importante, na qual o aluno mostrasse boa vontade e resultados positivos, ganhava-se cupons de 2 ou 3 pontos. Pela participação em eventos religiosos ou cívicos (parada de 7 de Setembro, por exemplo) ganhava-se um privilégio do Irmão Diretor, valendo 5 pontos!
Os cupons eram coloridos, e tinham diversos valores faciais, variando de um a cinco pontos. Eram usados para o pagamento de faltas: indisciplina, mau comportamento, e nota zero em arguições, provas ou falta de participação em atividades com os colegas.
Enquanto os privilégios eram distribuídos na hora do fato positivo, as faltas eram anotadas nos cadernos de disciplina de cada irmão-reitor de classe.
A cada quinzena, havia uma espécie de câmara de compensação, quando alunos faltosos podiam “pagar” suas faltas usando privilégios. Ora, acontecia que, regra geral, os alunos que cometiam faltas geralmente não tinham privilégios disponíveis, que eram abundantes nas mãos dos alunos mais dedicados. Ou seja, os privilégios estavam com
quem não precisava usá-los e vice versa.
Após a compensação, isto é, do pagamento das faltas pelos alunos indisciplinados ou que não estudavam, era emitido um boletim quinzenal, com as notas de Disciplina, Comportamento, Temas, Lições e Aplicação. Os boletins eram também graduados conforme a cor: EXCELENTE: Cor rosa, com nota 10 em todos os itens. BOM: na cor verde, se o aluno tivesse nota abaixo de 9 e até 7. SOFRIVEL: cor amarela, com notas abaixo de 6; MAU, branco, com notas abaixo de 4.
Os boletins, entregues aos alunos na sexta feira, deviam ser devolvidos ao irmão-reitor na segunda feira, assinado pelo pai ou pela mãe. O aluno que recebesse cartão branco devia comparecer ao ginásio, acompanhado do pai ou mãe, no sábado ou no domingo, para conversar com o irmão-diretor. Se não cumprido esse regulamente, o aluno não podia freqüentar as aulas. Receber um cartão branco era uma coisa terrível, não só entre os colegas como também para com a família. Sem falar que TRES CARTÕES BRANCOS EXPULLSAVAM O ALUNO DO GINÁSIO.
No final do ano os alunos que haviam recebido só cartões cor de rosa eram agraciados com um diploma de “Honra ao Mérito” pelo bom comportamento, etc. Recebi tal diploma no primeiro ano. Nas demais séries, por ter tido alguns cartões verdes ou amarelos durante o ano não mais recebi a homenagem.
Voltando aos pontos e faltas: havia, então, um intenso “comercio” de pontos. Em dinheiro, valiam um cruzeiro cada ponto. Como eu era um dos que sempre tinham “pontos” de sobra, os vendia, e recebia dinheiro que usava para comprar bombons na cantina do ginásio.
Como “As 1001 Noites” vieram para mim
Entretanto, o dinheiro não era fácil prá ninguém, e os mais necessitados de pontos eram os que menos tinham dinheiro para comprá-los. À exceção de Robertinho Severino, filho do Sr. Alberto Severino, importante homem de negócios, um dos ricaços da cidade.
Robertinho, que foi meu colega nos quatro anos ginasiais, era o pior elemento da classe: indisciplinado, mau estudante, não respeitava os Irmãos nem os professores leigos, era um capeta. Por isso, estava sempre com muitas faltas no caderno do Irmão-reitor. Isso em todos os quatro anos. Conforme crescia, piorava.
O pai delegava à esposa a responsabilidade da criação dos filhos (eram dois, o Carlito era menos “endiabrado”) e era ela quem visitava o Irmão diretor quando o Robertinho recebia cartões brancos.
Mas, mesmo tendo dinheiro, Robertinho precisava tanto de privilégios, que passou a trocar objetos diversos (compasso, caixas de lápis de cor) por pontos, a fim de pagar suas faltas.
Eu sempre tive muitos pontos disponíveis, e soube que ele possuía uma coleção de “As Mil e Uma Noites”, em três volumes cartonados.
Foi o meu negócio do ano. Por três vezes, na segunda série, em 1948, uma no primeiro semestre e duas no segundo semestre, troquei meus pontos pelos livros da coleção. Ofereci dez pontos para cada volume que Robertinho aceitou, sufocado que estava, prestes a receber um cartão branco.
Oh! Maravilha! Eram volumes grossos, com centenas de histórias contadas por Sherazade, muitas ilustrações em papel brilhante (cuchê) e capas duras, com desenhos de muitas cores vibrantes.
Não sei como ele explicou aos seus pais o desaparecimento da coleção de sua casa. Mas em minha casa, foi um problema. Durante alguns meses escondi os volumes atrás dos meus livros didáticos, mas mamãe me pegou lendo em plena três horas da tarde, quando devia estar estudando, e não tive como mentir. Ela aceitou a minha explicação, reconhecendo a lisura da transação e me deixou ficar com o a coleção.
— Mãe, por favor, não conte pro papai. Ele vai me mandar devolver os livros.
— Tá bom, mas você só vai ler nas férias. Agora, toca a estudar sério. Se não você vai acabar perdendo esta coleção.
E citou um provérbio italiano:
— Tutto che arriva facile, presto vola – que traduziu em seguida:
— Tudo que chega fácil, depressa voa.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 8 de abril de 2014
Conto # 837 da Série 1.OOO HISTÓRIAS