O dia em que me cegaram (EC)

- Furem meus olhos, furem meus olhos!

A pergunta não tem nada a ver, mas eu a lanço mesmo assim: Brasileiro leva tudo ao pé da letra?

O fato é: Uma festa esquisita. Mas pense numa festa esquisita. Música esquisita, pessoas esquisitas, bebidas esquisitas. Meus amigos insistiram em me levar. Eu fui. Normal. Quem disse que eu sou uma pessoa convencional?

O local ficava num ponto estranho da cidade, escuro, fedido e frequentado por drogados. Logo quando desci do carro, fui abordado por uma mocinha que devia ter no máximo dezesseis anos. Ela tinha na boca um cigarro de maconha. Pôs o toco de droga na minha boca. Meus amigos riram. Eu tirei e devolvi pra ela.

- Tem fogo aí, bonitão? – seus dentes eram meio que podres.

- Não fumo.

- Por quê?

- Porque não.

- O barato é legal. Experimenta aí.

E de novo o cigarro na minha boca. Meu, que chatice!

- Fica de boa, menina, tenho fogo não. Vou entrar.

Os outros já estavam lá dentro. Eu ia saindo, ela segurou o meu braço. Mão gelaaaaada...

- Aí, bonitão, vinte reais, serviço completo.

Não sou louco, nem doente, mas observei o produto. Tentei ignorar os dentes podres e os dezesseis anos, se é que os meus cálculos batiam. Pernas legais, um pouco perebentas, magrinha, mas dava para o gasto. Os peitinhos já haviam despontados acho que ao seu limite, mas talvez cresceriam mais. Dava pra considerar. Cheguei mais perto, farejei, o cheiro não me agradou.

- Filha, um banho pra você me custaria o dobro.

Ela se cheirou.

- Banho? Pra que banho? Uma rapidinha, meu, nem vai perceber.

Será que não acaba nunca? Tudo bem, confesso. Tenho uma queda por mulheres que cobram pelo sexo. Para os leigos, mesmo achando que não são muitos, putas. Mas vem cá, pagar vinte reais para uma menina de dezesseis anos, dentes podres, que não toma banho... Era caro demais.

Fiz o seguinte: Peguei minha carteira, tirei vinte reais, puxei o braço dela, abri sua mão e coloquei a nota. Ela sorriu e veio se esfregando, eu a afastei.

- Faço questão não. É grátis.

- Meu, agradecida.

- Eu que agradeço. – ‘’Sai de mim, chulé!’’.

- Um beijinho de agradecimento.

Não deu tempo. Ela avançou como uma cadela no cio, me agarrou com seus braços finos e lascou um beijo seco na minha boca. Quase me engoliu. Consegui me soltar e limpei minha boca na manga da camisa. Para ela, aquilo não foi uma ofensa. Deu uma gargalhada, enfiou de novo o cigarro na minha boca e saiu saltitando. Maroto, fiquei manjando sua bundinha... Empinadinha... Redondinha...

Ei, ei, volta pra realidade!

Esquecendo aquilo tudo, resolvi entrar naquela espelunca. Se aquela era só a entrada, qual seria o prato principal? E lá fui eu. Ah, e antes que eu me esqueça, guardei a maconha no meu bolso.

E imaginem qual não foi a minha surpresa ao, sutilmente, me adentrar ao recinto? Um formigueiro de gente. Parecia que todo mundo segurava uma bebida numa mão e na outra, um cigarrinho do demônio. Abordei um sujeito que batia a cabeça na parede, ria e conversava com alguém que eu não consegui ver.

- Ei, amigo, tem fogo?

- Ah, de boas... Tenho sim, parceiro das longas viagens pelo mundo... – Que brisa, velho! – Queres um fogo de mulher ou um fogo feito pelos homens?

- Eu aceitaria os dois, mas eu agora eu aceito apenas um isqueiro.

- Tenho esse objeto não, terráqueo. Mas tenho fósforo de cabeça quente.

- Beleza.

Ele pegou uma caixinha de fósforos no seu bolso, chacoalhou e sorriu.

- Deixa que eu acendo para vossa majestade.

Pus o cigarro na boca. Ele precisou de seis tentativas e de seis fósforos que perderam a vida em vão até conseguir acender.

Eu nunca havia feito aquilo. Traguei, soltei a fumaça. Esperei... Nada.

O doidão começou rir.

- Não é assim não, individuo dos céus.

Pegou o cigarro da minha mão. Puxou fumaça, prendeu e soltou. Soltou também uma gargalhada.

- Acende, puxa, prende, passa.

- Índio quer cachimbo, índio quer fazer fumaça. – Meu, eu me sentia um deles!

O maluco riu muito. Me esqueceu e voltou a bater a cabeça na parede.

- Ei, amigo, o que você tá bebendo?

- Ah, divino ser, estou bebendo a bebida dos deuses. Tem gosto de merda, mas o seu efeito é celestial.

Achei graça do maluco. Bom, resolvei experimentar. Traguei... Prendi... Soltei. E...

Caaaaara, que barato.

Tudo ficou engraçado, serião. Saca câmera lenta? Ah, eu estava flutuando. E não estava esbarrando nas pessoas. Mas eu sentia uns trancos de vez em quando. E isso me fazia rir. Muito! Todo mundo tava doidão. A música era cantada numa língua estranha, não consegui decifrar. Todo mundo ria e rodava. Eu ria de sei lá o que. Só sei que era muito engraçado. E lá fui eu, deslizando entre a multidão, passos de balé, na ponta dos pés. Tinha um balcão num canto afastado e pra lá eu fui. Dei outra tragada no cigarrinho, que pra mim já estava com gosto de chocolate.

Caaaaaaaaara, que brisa gelada do mar!

Uma mulher passou por mim. Ela tinha os olhos no lugar da boca, a boca onde devia estar uma orelha, duas orelhas onde eram os olhos e o nariz... O nariz estava onde estão todos os narizes. A boca na orelha queria me dar um beijo. Virei o rosto e encostei a minha orelha na sua boca. Que beijão, meu! Foi da hora. Todo mundo estava gostando. Todo mundo olhava pra nós dois. Mas decretei: Fim da cena! Vi meus amigos perto do balcão e fui pra lá, mas não sem antes dar um tapinha na bunda da conterrânea, que na verdade eram dois seios.

Aí eu falei:

- Vira aí.

Ela virou. A bunda estava onde estavam os seios. Eu ri muito. Muito! Demais! Sabe mais que demais? O triplo!

- Some daqui!

Se eu não fizesse isso, eu iria rir eternamente.

O Zeca, meu amigo baixinho, me puxou. Gritou na minha orelha por causa do barulho.

- Aí, tá doidão?

- Oh, Zequinha, amigo do meu coração, se você fosse conversar com aquela mulher, teria que gritar nos olhos dela. Não nos olhos, no lugar onde ficam os olhos.

- Aí, Jairo, ele tá doidão.

O Jairo chegou por trás e me ergueu no ar.

- O primeiro barato do beato. – Beato era o meu apelido. Só apelido. – O primeiro barato a gente nunca esquece.

- Isso merece um brinde! – gritou o Regaço, meu amigo bagaceira.

Bebidas verdes, vermelhas e azuis foram despejadas na minha boca e deslizaram garganta abaixo. Aí a minha cabeça rodou. Ou eu rodei? Só sei que todo mundo rodou. E de repente, todo mundo estava em cima de mim. Braços me puxaram pra cima. Eu gritei:

- Sabor de merda, efeito celestial!

Todo mundo repetiu:

- Sabor de merda, efeito celestial!

E depois um vigoroso: ‘’VIVA!’’.

E foi então que, em cima do balcão, surgiu uma mulher velha, mas vestida com roupas apertadas.

- Gostosa! – gritei.

E era mesmo.

No momento.

Outras pessoas me acompanharam no grito de guerra:

- Gostosa! Gostosa! Gostosa!

- Flor do meu jardim! – gritou uma voz ao fundo.

- Do meu jardim, porra! – esbravejei para trás, mas um milhão de rostos cobriram a minha vista.

A velha falou no microfone:

- Brigadão pelo carinho, seus fofos. – A plateia explodiu. Êxtase geral. – Mas eu não serei o brinde de hoje – A plateia explodiu. Tristeza total. – Com vocês, nossas mulheres mais belas!

E então começou o desfile. Negões de três metros e trezentos quilos vestidos com saias curtas e sutiãs sem enchimentos. Eles andavam, paravam para as fotos, faziam poses, rebolavam, se esfregavam, beijavam, chupavam os dedos mindinhos, dançavam samba, funk, aquela música cantada em outro idioma, e imitavam cobras, se jogando ao chão e se contorcendo.

Eu, na minha loucura, gritei:

- Furem meus olhos, furem meus olhos!

Conselho 1: Não fume maconha nem qualquer outra merda que te ofereçam.

Conselho 2: Não fume maconha nem qualquer outra merda que te ofereçam em ambientes estranhos.

Experiência própria.

A loucura não tem limites.

Eu pensei que estava louco, mas pelo visto havia me enganado.

Canetas surgiram de não sei de onde e investiram rumo aos meus globos oculares.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo - O Dia em que Fiquei Cego

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