Ressaca mutante

Não estou conseguindo pensar. Nem levantar. Não quero saber como cheguei até aqui ou quem esta do meu lado. Quero sumir. Me mataria agora se ainda me restasse alguma dignidade ou uma arma ao alcance da minha mão. Acordar no quarto de uma desconhecida só é pior que acordar sozinho no quarto de uma desconhecida. E com dores. Muitas dores. Alguém me tire daqui! Não tem ninguém aqui. Não quero saber onde estou. Não quero sair daqui e descobrir de quem é a voz atrás da porta. Será que se fechar o olho e desejar muito forte consigo me tele-transportar para o cume do monte Aconcágua? Hummmm..... Também não funciona. Quando tiver condições posso escapar pela janela. Alguém abriu a porta! Posição fingir que esta dormindo.........não acendeu a luz. Legal. Mexeu na gaveta da escrivaninha. Parou no meio do quarto. Deve estar me olhando. Não devo ter me saído bem ontem a noite. Não sou bom de cama nem super concentrado ou apaixonado. Muito louco com certeza é um desastre. Respirar devagar. Respirar devagar. Saiu.

Consegui dormir mais um pouco. Agora me sinto mais cansado e mais dolorido. Não tem nada que marque as horas por aqui? Do que será que este povo tanto fala? Se fizer um esforço consigo fugir pela janela. Chegou a hora. Tirar forças de toda fobia social encrostada no âmago do ser e abrir a janela com cuidado. “Poc, poc, poc....” Malditas grades! Já esta a noite? Passos no corredor.......sombra na porta........merda! “Oi.” Ela tem quatro braços! Ela tem quatro braços! “Bom dia, ou sei lá. Me desculpe por ontem.” Os quatro se mexem para lá e para cá! São de verdade! “Você queria sair pela janela?” “Sabe, não queria incomodar vocês na sala.” Deve ser efeito colateral de alguma coisa que me deram. Não é possível. Ou ela tem quatro braços que se mexem para lá e para cá?! “Você não quer tomar um café?.” “Preciso ir no banheiro antes.” Será que alguma coisa cresceu em mim? Não, continua tudo igual. Depois de vomitar um pouco e fazer uns gargarejos para tentar salvar a garganta, lavei a cara. Ela não podia ter quatro braços.

Fui andando a passos curtos na direção do fim do corredor dando tudo de mim para lembrar alguma coisa sobre ontem a noite. Saí da firma, fui para o bar do Jaime e comecei a beber. A filha do Jaime se engraçou com um almofadinha que estava perdido por lá e tomei umas doses de pinga para não perceber o que acontecia com ela. Não lembro mais. Socorro! Tem um cara com olho na testa sentado vendo televisão. Um olho que pisca! “Tudo bem?” Tem uma mulher com dois braços no lugar das pernas do lado dele! Braços nas pernas! Santo Deus! Tenho só dois olhos, dois braços e duas pernas. Sou o estranho aqui! “Olá?” Se recompor. Fazer cara de paisagem. Fingir que esta tudo normal. É só o efeito da ressaca. Tem que ser só o efeito da ressaca! “Desculpem.......acho que ainda tem alguma coisa de ontem fazendo efeito em mim.” Era isso. Só podia ser isso! “Tudo bem. A Cassy esta fazendo café na cozinha.” “Vou lá.” Tomara que nada estranho esteja no meu caminho desta vez. Não vou suportar ver uma mulher com três tetas ou sei lá.

O cheiro do café era bom. Um pouco de qualquer coisa não alcóolica talvez me fizesse ver o velho mundo como ele era até ontem. Enquanto isso a Cassy carregava duas xícaras numa mão, o café na outra, fumava com a terceira e gesticulava com a que estava sobrando. “Tudo bem com você? Você não parece bem....” Sabe, não é todo dia que durmo com uma mulher de quatro braços....“Esta sim, só estou com dor de cabeça.” Muita calma, ela pode se tornar hostil. Se uma mulher com dois braços faz um estrago violento, com quatro deve ser um estrondo. “Então você precisou dormir o dia inteiro para recuperar a energia?” Me ocorreu agora que poderia estar sonhando. Toda esta coisa combina com um sonho. “É, a noite de ontem foi agitada.” Podemos parar por aqui, não preciso de detalhes. “Você tem algum lugar para ir hoje?” Ir embora daqui o mais rápido possível. “Infelizmente sim.” “Vamos pedir pizza para jantar...” O entregador acha normal você ter quatro braços? “Desculpe, mas preciso ir.” Virei o café quente, que desceu queimando minha garganta e contorceu minha cara, e fui levantando como quem diz: “estou saindo agora”, antes que ela me oferecesse alguma coisa.

Passei pela sala sem fazer questão de olhar para os três olhos e a mulher braço. Depois de abrir a porta a Cassy se virou abruptamente e me agarrou antes que eu pudesse entender o que estava acontecendo. Quando ela me abraçou senti como se uma jararaca tivesse me apertando. Mantive a boca fechada com medo de sentir uma língua bifurcada dentro da minha boca. Não consegui falar mais nada. Passei pela porta e sai sem olhar para trás. Virei o quarteirão e me peguei caçando, desesperado para encontrar alguém com dois braços, duas pernas, dois olhos, um nariz, no padrão ser humano simples e vulgar. Mas o cara que estava parado na rua fumando um cigarro tinha dois queijos na testa e dez dedos em cada mão. Atravessei a rua para desviar dele e me deparei com uma senhora que ostentava um rabo e dois narizes escorrendo. Não me segurei mais e sai correndo. Peguei embalo, me atirei de cabeça na primeira parede que vi e apaguei.