A TRISTE TRADUÇÃO DUM SORRISO

"Dos contos que a vida nos conta..."

Na rotina repetitiva e apressada, característica do dia a dia daquele ambulatório, uma cena o emoldurou como “ um dia especial”.

Ele, um jovem médico, clínico de adultos,a princípio pensou tratar-se de um erro de agendamento, pois uma criança muito pequena, aparentando uns sete anos, aguardava por sua avaliação. Perguntou desconfiado:

-Treze anos?

-Catorze moço, no mês que vem-respondeu a mãe.

Ela, durante toda a consulta, fitava-o com um inexplicável sorriso, meio assustado,contrastante com seu estado geral, que deixava o doutor boquiaberto.

Perplexo escutava as informações da mãe.Nascera no sertão nordestino, e ficara lá com a avó e mais dois irmãos, enquanto a mãe migrava para São Paulo a procura de uma vida melhor.Há mais ou menos uma semana chegara de lá para tratar a saúde, e a mãe pouco dela sabia, pois não a via há onze anos...

A voz calava.Apenas a substituía por um sorriso fixo,ora inexpressivo, ora terno e ingênuo, como é próprio das crianças de menor idade.Parecia obrigada a sorrir.Os olhos desidratados não tinham aquele brilho costumeiro dos sorrisos das crianças.

Era como se fosse um sorriso precocemente senil.Sorria às simples perguntas que o doutor lhe fazia,sorria ao contato das suas mãos ao examiná-la,espantada com a nova situação, ou talvez pelo raro momento de cuidado e atenção em sua vida.

Parecia envergonhada, mas a escassa hemoglobina que lhe corria nos vasos, lhe impedia enrubescer.

-Qual o seu nome? Perguntou o doutor com cuidado.E ela, lhe respondeu com um sorriso.

-Quantos anos tem? -outro sorriso... e a voz calava.

Não precisava falar. Seus olhos falavam, dialogavam por ela.Há momentos em que o silêncio é o maior dos gritos...

Acelerado, podia-se auscultar seu coração galopante,sedento por socorro, ou quiçá ansioso pela expectativa de chegar à São Paulo, esta cidade cantada por todos,berço da esperança de dias melhores, palco do teatro de sonhos efêmeros,aonde quem sabe, o destino pudesse ser um cenário emoldurado pela dignidade.

Por um instante, o médico lembrou-se de MONTEIRO LOBATO.

Seu polêmico e chocante personagem, mais atual do que nunca,saltava vivo de suas páginas inesquecíveis,para postar-se à sua frente,em carne e osso.

Pouquíssima carne... desbotada e decorada por feridas disseminadas,delineava uma anatomia raquítica visível a olho nu..Contudo, um esqueleto sorridente.

Sorria por não ter referências.Era assim que o médico interpretava aquele sorriso contrastante com tanta miséria.

-Ô moço,é grave? perguntou a mãe.

Ficou desconcertado com a sua limitação.A resposta complexa que ali caberia, não seria esclarecedora.

-Não senhora,só umas vitaminas e ela ficará bem.

-Ô moço,se abrir o apetite.... tem comida não!

Arregalou os olhos...chocado!

O tal do “moço”, jamais imaginara uma colocação tão ponderada,fria e realista.

Silenciosamente,foi obrigado a concordar.

“Melhor mesmo seria não ter fome, não ter sede, não ter dor, não ter sonhos , não ter aquela vida tão dura!” Mas esse pensamento, ele o afugentou ali.

Melhor mesmo, seria não ter aquela limitação de médico, porque na verdade, "o que não tem remédio, remediado está".

E nada melhor do que remediar com um sorriso, brotado do trôpego esforço de um corpo combalido, fiel expressão de mais uma vida perdida...mas de alma alegremente congelada.

Então, carinhosamente, afagou a face da eterna criança...

...e devolveu-lhe o mesmo sorriso.