Passagem
Arigó, de nascimento Cícero Sant’Anna, respondeu prontamente à voz surda que só ele ouviu.
— Tô indo, meu pai!
E num movimento brusco, despertou. Não de todo. Na mente embaralhada pelo peso de seus oitenta e seis anos de idade, ideias soltas roçavam, fiapos se emaranhavam cada vez mais com o nascer e morrer do dia. Quando menino e moço, acordava com o canto do galo para tirar leite da vaca, dar milho para as galinhas e estar pronto para ir com o pai e os irmãos roçar o mato da plantação. “Quem dorme até tarde é Barão. Pobre só ajunta alguma coisa, madrugando”. Era o que o pai dizia. Mas agora Arigó já não era mais menino e nem moço, a boca seca e o chiado nos ouvidos eram constantes, mesmo com os remédios para o diabetes e hipertensão. Lembrou-se de Agustina, mulher miúda que havia lhe dado três filhos — seriam seis se todos tivessem vingado —, e tateou com avidez pela cama, na escuridão do quarto, desejando encontrá-la. Nada.
Levantou sentindo tontura e a vista turva, e logo a incontinência urinária o fez molhar toda a calça deixando o piso frio ser aquecido pelo mijo. “Isso não é vida.” Pensou num muxoxo triste, e perguntou-se o que havia acontecido com todo o seu vigor.
O céu começava a ficar luzidio quando Arigó arrastou sua velha cadeira de balanço até a porta de entrada, fazendo o atrito de ferro na cerâmica ecoar pela casa e ferir os ouvidos de Filomena, a filha caçula de trinta e oito anos, gorda e irritadiça. Sozinha em sua mesquinhez, ela bufou com aquele breve susto, remexendo as carnes rosadas sobre a cama. Arigó, por sua vez, também se remexeu pousando as mãos cruzadas sobre o ventre disforme da cirurgia mal cicatrizada, e tentou organizar as ideias. Sem sucesso.
Transeuntes acenaram da rua em resposta ao seu gesto de tanger as cabras que só existiam na memória, e quando o velho homem se dava conta disso, um suspiro duro lhe rasgava a garganta. Sentia-se um estranho num mundo que mudava com frequência sem que ele pudesse familiarizar-se. A dor da viuvez amargava na boca e a morte do único filho varão também o deixava ferido, provocando sustos todas as vezes que vinha o intento de vê-los seguido da lembrança de que aquilo já não era possível. Sozinho em embalos queixosos, tentava consolar-se, porém a ausência de remédios acelerava as batidas no peito, numa inquietação crescente junto com a fome voraz.
Abriu a boca a fim de chamar pela filha, mas um medo gradativo efervesceu quando percebeu não lembrar-se mais do nome dela. Negando essa ideia com a cabeça, o indicador correu sobre os outros dedos enquanto contava os membros de sua genealogia, a língua ia e vinha na boca coçando o palato e provocando a tosse seca que mais uma vez permitia a urina em jatos curtos. Os olhos cor de ardósia perscrutavam o vazio fazendo-o sentir-se perdido dentro de si mesmo, como em um nevoeiro. Restava-lhe somente pedir ao pai e a mãe, já sepultados, o café com leite e o pão, pois tinha fome.
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Naquela manhã, um desejo repentino transpassou a cabecinha idosa de cabelos teimosos que insistiam em permanecer negros, mesmo que em quantidade muito pequena. E Cícero Arigó quis desbravar o mundo da mesma forma que havia feito quando rapaz. Ah! Mas como saiu empolgado naquele dia, ao lado de Benna e Raimundo (meio primos, meio irmãos) e sumiram de Sobral, a fim de enriquecer em Serra Pelada. A sanfona, zabumba e triângulo foram colocados para trabalhar e lhes renderam alguns trocados para seguirem até o destino. Mas quando descobriram o toque de Midas ao avesso, a sanfona foi a primeira a ser sacrificada num pequeno armazém, e o orgulho tolo não permitiu que ele voltasse para casa dos pais impelindo-o Brasil afora.
O Sol já ia alto e as pessoas seguiam apressadas na rua indiferentes ao sanfoneiro habilidoso que dedilhava os teclados invisíveis de sua sanfona cheia de sarcomas trazidos pelo Sol e pelo tempo. Logo a cadeira de balanço foi abandonada e cessou seus movimentou de imediato enquanto as perninhas fracas e inchadas chegavam até o portão num suplício lamurioso. As grossas mãos puxaram o trinco e as pessoas observaram-no assustadas, como se ele fosse um ser de outro planeta.
Deitada em sua estreita cama, Filomena seguia adormecida. Os remédios e o magro desjejum do pai só seriam dados lá pelas nove horas, pois ela não conseguia despertar antes disso. Talvez toda aquela moleza fosse culpa do próprio Cícero, quando permitia que sua caçulinha ficasse deitada até mais tarde. Era a filha de sua velhice e ele se lembrava do quão desagradável era perder o sono quando menino, e do tanto que gostaria que o pai houvesse permitido o mesmo.
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O pão e o café apareceram sobre a mesinha, seguido das duas pílulas de cor clara, uma dose apressada prescrita pela preguiça. “Tá com manha hoje.” Pensou Filomena quando encontrou a cadeira de balanço vazia. Com seus modos rudes ela saiu batendo as portas e chamando pelo pai, decrescendo a raiva e aumentando a cisma.
— O danado fugiu de novo!
E, enojada, limpava o piso do quarto de Arigó, na certeza de que alguém brevemente o traria de volta assim que ele chegasse ao final do quarteirão, lugar até onde conseguia ir antes das ideias se confundirem e desejar os embalos de sua cadeira em frente à porta. “Ei, tu sabe onde eu moro?” Era o que Filomena imaginava que iria acontecer novamente. Mas o velho Cícero não deu as caras, e assim que o almoço foi colocado no fogo, a mulher grande dependurou-se no telefone.
— Fica assim não, mana, ele aparece. Tu deu os remédios dele?
E as duas pílulas acusadoras queimaram as vistas de Filomena que respondeu apressada:
— A-ham.
— Então.
Filomena levantou as portas do pequeno ateliê para consertos de roupas, e a TV retirou sua atenção. Somente quando a barriga roncou é que ela se lembrou mais uma vez do pai e se agitou. A irmã mais velha correu do centro da cidade e as duas ficaram se enganando pela casa enquanto trocavam acusações.
— É tu que dorme até tarde.
— Então leva ele pra tua casa, ora!
— Eu não, tenho filha menina, e não quero ela vendo as bronhas nojentas do papai pra mulher do jornal.
— Runf!
— Rum, o quê?
E o tempo passava. Só prestes a anoitecer é que o pai surgiu no portão amparado por uma vizinha. Vinha enlameado e mal cheiroso com nódoas amarelecidas que se somavam a outras.
— Mas papai… Isso é brincadeira?
E sobre uma cadeira de plástico as duas davam-lhe banho, esguichando água com uma mangueira enquanto despejavam reprimendas.
Por um ou dois dias os remédios vieram certos, houve companhia café e almoço. Mas se ele lembrava e tentava falar onde havia estado e o que tinha feito, Filomena espanava o intento com um gesto de mãos, mandando-o prestar atenção na novela. E assim Arigó se calava e as memórias se perdiam em meio às outras.
Em seu ateliê, Filomena vigiava o pai, mesmo que só colocasse a cabeça para fora quando alguém acenava da rua para ele. Arigó, resignado, sentia a dor da ausência de visitas e a falta de interesse para consigo. Gostava era da casa cheia, dos meninos correndo no quintal como antes, ou sentados diante dele para ouvir os causos de assombração. E se agora olhava para os seios das filhas, era pela ausência de tino e pelo susto do tempo decorrido.
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A segunda fuga veio de madrugada assim como o retorno, com as passadas arrastadas. Ah! Mas Filomena gritou alto num gesto que nem a mãe de Arigó fizera, e ameaçou amarrá-lo na cadeira. Carrancudo, o pai só desejou articular corretamente para poder mandar tudo à merda.
Em pouco tempo, as noites perderam a paz, as chaves foram escondidas obrigando Cícero a permanecer recluso. No escuro ele percorria de lá para cá, pisoteando o chão com os calcanhares e provocando sons que despertavam Filomena. Então ela o levava de volta para cama e ele arregalava os olhos como se não mais reconhecesse a filha.
A consulta urgente só aconteceria depois de quinze dias, pois o médico da casinha próxima estava em férias.
— É demência de velho. Não sei pra quê perder tempo. — Reclamava Filomena para a irmã mais velha, responsável por agendar a visita médica.
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— Eu já vô!
E a voz alegre fez a filha perder um ou dois lances novelescos.
— Vai pra onde, pai?
O sorriso banguela vinha seguido do assentimento breve, e não demorava para que ele repetisse mais uma vez:
— Eu já vô!
A chave foi passada na fechadura em duas voltas, janelas foram vedadas e Filomena, num ato de bondade, escancarou a porta do seu quarto para observar quando o pai sairia pela casa fazendo o alarde noturno, mas nada foi ouvido. Num sono reconfortante, a mulher desquitada quando ainda era jovem, dormiu até as dez, e quando levou o café e remédios até o pai, constatou num susto rápido que ele havia mesmo ido embora.
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Até que a casa se encheu de visita em roda do caixão do velho Arigó. E as filhas o olharam com ternura de mãos dadas lembrando dos bons tempos de risos quando meninas. Na parede, Agustina, a mãe, e o irmão pareciam que também velavam o corpo vazio rodeado de flores de plástico. A neta e o neto olhavam apáticos, pois o contato era pouco, mas respeitavam o momento não cedendo ao desejo de correr pela casa e brincar de pega pega com as outras crianças filhas dos visitantes.
Num outro plano, Cícero Sant’Anna, observava aquele mundo estranho do qual saíra, com pessoas de fala apressada e voz pontiaguda como facas. Olhava para si mesmo banhado de luz e se comparava àquelas estranhas criaturas com olhos maiores que a barriga, cabeças enormes e cérebro de alfinete. Não havia susto ou medo, só um conforto quente como um gole de vinho. Rodeado de outros rostos amigos, Cícero se afastou dos seres tolos, de pouco brilho que tentavam permanecer unidos em roda do singelo esquife de madeira.
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