Um triste amanhecer
Um triste amanhecer
O ano que passou, não foi um ano de fartura. As chuvas esparsas não propiciaram uma colheita capaz de suportar a espera do inverno seguinte. O farnel de Severino escasseava-se a cada dia, reativando a preocupação constante de todos que viviam naquelas brenhas esquecidas por Deus – a seca.
A caatinga ressequida sinalizava e dava indicativos de maiores dificuldades para os dias seguintes para os degradados filhos de Eva que habitavam naquelas plagas nordestinas.
A falta de chuvas, para o nordestino sertanejo, significa a falta de interação com Deus. Significa que o sofrimento está diretamente atrelado à falta de crença Naquele que pode salvar e redimir. Significa aceitar a miséria como sendo culpa de quem se afasta de Deus e por isso, deve ser castigado até que sucumbam suas últimas forças, até a morte.
No dia 14 de dezembro, Severino acordou cedo e foi até um dos recantos da cozinha, verificar se a pedra de sal grosso que tinha sido colocada com aparato próprio e como sendo a primeira tentativa de esperançar um bom inverno para o ano seguinte. Para tristeza do sertanejo Severino, a pedra de sal não chorou. Dela não escorreu uma só gota de água. O dia de Santa Luzia não abriu nenhuma porta, nenhuma janela sequer, para que os habitantes do sertão renovassem a esperança de dias melhores. Depois daquele dia, restava uma outra chance – o dia de São José, dia 19 de março, último dia para que o sertanejo acreditasse na clemência de Deus. Se até lá não chovesse, o maldito castigo estaria confirmado – não haveria o inverno suficiente para matar a fome dos que, naquele inferno viviam.
Como resposta ao castigo que sempre recebiam, Severino e sua Maria das Graças a quem chamava de Gracinha, presenteava o mundo com mais uma vida, com mais um filho. De ano em ano e de castigo em castigo, os dois tinham seis filhos, todos com nome de santo. O primeiro deles, foi Luzia que nasceu no dia 13 de dezembro e que completou 9 anos no dia da última experiência do sal. No ano seguinte ao seu nascimento, o inverno foi bom, a colheita foi farta e o crédito da fartura foi para Santa Luzia. O filho seguinte foi Sebastião que parecendo querer imitar o santo, nasceu “flechado”, era surdo-mudo. Os demais, Fátima, João e Aparecida, não se apresentavam ao mundo com destaques. Eram apenas raquíticos.
Desde o nascimento de Luzia, Gracinha adotou como técnica, servir garapa de água com açúcar aos filhos quando estes acordavam altas horas da noite choramingando com fome. Este hábito, como via de conseqüência, levou a todos fazerem xixi na rede. Por esse motivo, todas as redes em que dormiam seus filhos, eram todas remendadas no fundo e como água era um recurso escasso, o cheiro de urina predomina na sala onde dormiam os cinco mais velhos. Aparecida, a mais nova, dormia no quarto do casal.
Dos seis filhos do casal, o mais robusto era Luzia dada a fartura alimentar que suplementou a primeira lactação de Gracinha. A partir do segundo filho, o mudinho, Gracinha começou a definhar e seus seios hoje, pareciam mais duas meias molhadas estendidas sobre o peito esquelético.
A família de Severino morava nas terras de um tal Leocádio que vivia numa cidade distante 50 quilômetros da fazenda Santa Fé. Para Leocádio, pouco interessava saber se seus moradores estavam morrendo de fome ou de sede. Isso não era problema dele. Interessava-lhe apenas receber a parte que lhe cabia na produção, na colheita, se houvesse. Quando algum de seus coitados moradores procurava-lhe para suprir alguma carência ele dizia com sarcasmo: vá pedir ao Lula, você não votou nele?
Como Lula também não está nem aí para as dores da pobreza, manda que seus asseclas doem mensalmente, alguns reais para aquelas famílias que tem filhos menores de 14 anos na escola. Graças a Deus e a Lula, Severino tem a Luzia que todo mês consegue um saco de arroz para que não morram todos de fome.
A água barrenta de um pequeno açude da redondeza não serve mais para o consumo daqueles miseráveis. Os próprios animais têm dificuldade em separar água de lama. Vevel, a cabra de cujas tetas, escorriam apenas um copo de leite para Aparecida, viu seu único filhote morrer de fome. Entre a morte de Aparecida, por falta de leite e do cabrito, por questão óbvia, Severino preferiu que o segundo fosse ceifado pela fome.
Na dispensa, Gracinha não tinha mais do que o abençoado arroz, um saldo de uns três quilos de feijão macassar, sal, açúcar, pó de café e algumas raquíticas e desdentadas espigas de milho seco.
O mês de fevereiro chegava ao final e se tudo estava mal, a situação tornou-se dramática quando Gracinha comunicou a Severino que estava esperando mais um filho.
- Eu não acredito. E agora, que vamos fazer?
- Esperar ele chegar. É o que nos resta.
- Meu Deus do céu, Aparecida ainda nem saiu dos cueiros e já vem mais um. A culpa é sua Gracinha. Você bem que poderia tomar aqueles caché que evita menino.
- Você ta doido Bil, o padre disse que Deus não abençoa.
- Nesses dias eu junto esse monte de menino e vou deixar na porta da igreja. Quero ver o que o padre vai dizer.
- Tenha calma Bil, Deus vai ajudar a nóis.
- Essa conversa é antiga. O certo mesmo é não chegar mais perto de você. Não posso nem lhe triscar que você prenha.
- Faça isso não, Bil. Essa é alegria que a gente ainda tem. Se se acabar, é melhor morrer.
Terminada a conversa, Severino foi até a porta da casa. Olhou para o céu de brigadeiro que majestosamente sobrepunha-se sobre sua cabeça povoada por indagações não respondidas pelo silencioso céu.
- Gracinha, vou lá no Serrote e não sei que hora volto.
Serrote era uma comunidade de mais ou menos umas vinte famílias e que distava uns dois quilômetros de onde morava Severino. Em lá chegando, foi tratar direto com Tertuliano, o líder comunitário.
- Compadre estou aqui para ver se você me ajuda. Estou numa situação difícil. Nem água tenho mais para beber e para comer, só dá para esta semana e eu não quero ver meus bichim morrer de fome. O que você pode fazer por mim?
- Olhe compadre Bil, você chegou numa boa hora. Ontem a diretoria da Associação se reuniu e decidiu que amanhã vamos todos falar com o prefeito sobre o tormento que todos nós estamos vivendo. Você está convidado a ir com a gente. O vereador Pedoca vai mandar uma caminhão pra levar nós. Vamos sair às sete horas.Você vai com nós?
- Vou sim, compadre.
- Pois ta certo chegue cedo.
No dia seguinte, quando a barra vinha clareando, Severino botou o pé na estrada e antes que o caminhão chegasse, lá estava o pobre indigente na porta do compadre Tertuliano.
- Bom dia compadre, entre e venha tomar um copo de café.
O convite caiu do céu acompanhado de uma “taiada” de cuscuz.
O prefeito foi receptivo e não cedeu espaço para a oposição municipal. Comprometeu-se em enviar para a comunidade ainda no final daquela semana, um carro-pipa com 7000 litros de água e trinta cestas básicas e prometeu ir à capital falar com o governador do Estado, levando consigo um Decreto de calamidade pública a fim de conseguir recursos que pudessem mitigar o sofrimento de seu povo.
Vevel, não se sabe se pela falta do filhote, de repente ficou triste e estancou a produção de leite. Cabisbaixa, dava sinais de que se preparava para a morte, também provocada pela fome e pela sede. Previdente e antes que a desgraça acontecesse, Severino resolveu sacrificar o único animal que durante muitos dias matou a fome de Aparecida e com isso, aproveitar seu couro para a venda – valia 6 reais e sua carcaça para complemento alimentar, já que carne sobre ela, não mais tinha.
No dia 10 de março, no povoado Serrote, começaram as novenas em louvor a São José.
A beata Filomena, líder religiosa, foi de casa em casa pedir a presença de todos às novenas, todos os dias, a fim de que o clamor da comunidade chegasse até aos ouvidos de São José. Severino e sua prole compareceram a todas.
Inspirada, a beata copiou à mão a seguinte ladainha que distribuiu com todos os participantes que divididos em dois grupos que, harmoniosos cantavam no início e no final de cada novena:
Valei-me meu São José,
Santo nobre e padroeiro,
Mandai cair muita chuva
Pra molhar o meu terreiro
Os meus filhos estão com fome
E a sede me apavora,
Se teu poder não for tanto,
Invocai nossa senhora
O prazer desta novena,
Ta na esperança do povo,
Se cair muita chuva,
Ano que vem, nós vem de novo.
A última novena aconteceu no sábado, dia 19 de março.
O Padre Cipriano compareceu para o encerramento. O vereador Pedoca que deu o suporte às novenas, oferecendo a todos pão, bolacha e café ao término de cada uma, foi solícito com o padre – dispôs um carro para levá-lo e trazê-lo. Afinal, racionava o edil: como conseguir se reeleger sem a ajuda da igreja, representada pelo padre, que sua vez representava Deus.
Após o encerramento, todos retornaram para suas casas.
O céu estrelado denotava que São José, pelo menos naquela noite, deveria estar preocupado com outros flagelos, menos com os miseráveis do “Serrote”.
Quando o dia amanheceu, Severino assuntou o tempo. Nenhuma nuvem desgarrada se apresentava no céu como mensageira da clemência do santo. Chegou a noite e nada.
Severino monologava: quem faiou, o santo ou nóis? Rápido deduzia: foi nóis. São José num faia nunca. Mais cedo ou mais tarde ele acode nóis.
Foram três meses de espera. Gracinha, já no quinto mês de gravidez mostrava a barriga saliente.
No dia se S. João, 24 de junho, Severino, não suportando os castigos emanados do inferno em que vivia, fechou questão com Gracinha – vamos embora daqui.
Enquanto a madrugada era desvirginada pelo sol impiedoso, Severino se preparava para a maratona que enfrentaria juntamente com os demais membros da família.
A família não tinha muito. Apenas as redes, as roupas que cobriam o corpo e alguns trapos. Juntaram tudo, inclusive uma cabaça de água, repartiram o peso e partiram.
Antes de iniciar a caminhada, Severino contemplou a triste cena de uma casa abandonada. Lembrou-se das alegrias vividas, do amor que fez gerar os filhos, dos tempos de fartura e da jovem presença de Gracinha que adornava com um sorriso alegria os melhores dias de suas juventudes. Olhou para os filhos, maltrapilhos e maltratados. E chorou. Não era bem aquilo que sonhara para ele, para sua mulherzinha e para seus Querubins.
- O que é Bil? – perguntou Gracinha
- Nada. Só saudade.
Cortaram caminhos para evitar passar por “Serrote”. Não queriam mais despedidas.
Margeando o asfalto, chegaram à cidade cujo prefeito já os tinha ajudado. Em frente à prefeitura, arriaram seus trecos na esperança de que qualquer coisa melhor lhes acontecesse.
Com simplicidade Severino e Gracinha, que sempre pensaram juntos, concluíam que o máximo que poderia acontecer seria o céu se abrir ou quem sabe, um inferno pior aparecer.