25 ANDARES

A luz dos holofotes quase me cegando quando nasci (não sei se isso foi uma recordação real ou uma ilusão do meu inconsciente); o medo, o frio, o desconforto, e o desamparo acalmado apenas no colo materno; a fome saciada pelo seio farto, cheio do leite e do afeto da mãe zelosa; a primeira queda ao tentar aprender a andar; o primeiro beijo roubado aos doze anos de uma coleguinha de quinta série; a taquicardia e o medo quando tinha dez anos e roubei uma revista em quadrinhos que não tinha dinheiro pra comprar; a dor lancinante que senti quando quebrei o braço depois de cair da bicicleta; o prazer de acertar um soco na cara do moleque que me ofendeu na quarta série; a primeira vez que senti algo que achei se tratar de paixão (e quando a gente se apaixona, costuma dizer que está amando) e todas as vezes em que sofri com as frustrações amorosas, sem saber que não eram amores; levei tempo para concluir que eram apenas carência, e nada mais; a primeira vez que eu disse "eu te amo" e a última que ouvi "eu te odeio"; a primeira relação sexual, o primeiro orgasmo, a primeira broxada; as vezes em que eu pensei em me matar, e de algumas tentativas sem sucesso; os fracassos amorosos, profissionais e existenciais; a dor de velar o corpo da minha própria mãe morta; às vezes em que fiquei pensando como seria o rosto e o temperamento de um pai que nunca conheci; a saudade do irmão mais velho que sumiu depois de uma briga feia, e hoje me arrependo de não tê-lo procurado antes para pedir-lhe perdão, mesmo sem achar que eu estava errado (a gente demora pra aprender que perdão é pra ser pedido, e não exigido como condição e admissão de culpa ou de falta de razão); a vergonha que senti e a humilhação pela qual passei no dia em que fui largado por minha ex-noiva no altar, eu realmente a amava; as horas e horas que desperdicei tentando entender porquê não conseguia gostar de quem gostava de mim e só me interessava sempre por quem não dava a mínima para os meus sentimentos; os porres homéricos; os terríveis momentos de lucidez; os banhos de chuva; a pneumonia que quase me matou; os momentos em que chorei, um choro de chegar até a soluçar, e não havia nenhum ombro amigo para me consolar; os períodos de desemprego, quando fiquei na miséria, passei fome, e passei a sentir um ódio e uma revolta dentro de mim, um ódio do mundo, da vida, de mim mesmo, ódio até de deus (esse ódio e essa revolta nunca passaram); o último suspiro do meu cachorro antes de morrer; o primeiro salário ganho com o esforço do meu trabalho, e a última parcela do seguro desemprego; as noites insones; as músicas do Raul Seixas e do Bob Dylan, os poemas do Drummond, os filmes de Luis Buñuel, a literatura dos autores russos e a paisagem do interior de Minas (coisas das quais realmente sentirei falta); o cansaço que foi se tornando cada vez maior, a ponto de me vencer; o momento em que resolvi desistir, de tudo; o dia, a hora e a circunstância em que, depois de muito refletir, imerso dentro de mim mesmo, de chorar e, ao final, sentir um gosto de amargura e rancor na boca, decidi dar um basta à tudo isso, e pôr um fim a uma história que parecia não ter tido começo; os dias perambulando pelas ruas, pensando na forma, no lugar e no método mais adequado e rápido de realizar o que tinha em mente; a sensação de ter escolhido o lugar certo ao avistar um edifício chamado Byron; os passos contados nas escadas, já que não quis subir de elevador, eu queria sentir minhas pernas fazerem o último esforço, até queimarem da ardência do exercício repetido, até a chegada no parapeito; o breve longo momento de contemplação da vista lá de cima e de convencimento de que estava fazendo, não a coisa certa, mas o que eu achava que devia fazer; o último olhar pesaroso e opaco para o horizonte, buscando o firmamento, que não se mostrou aos meus olhos já vazios; um leve suspiro e o salto. E talvez, se o prédio tivesse mais de vinte e cinco andares, eu teria me lembrado de mais coisas antes do impacto com a calçada coberta de brita.

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Wilson Santos
Enviado por Wilson Santos em 19/06/2015
Reeditado em 19/06/2015
Código do texto: T5282582
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