All Star #33
Preciso acordar uma hora e meia antes de ir para escola. Tenho que tomar banho, arrumar o cabelo, tomar café da manhã. Quando não consigo levantar da cama as 5:30 A.M. prefiro ficar em casa. Foi o que aconteceu hoje. O rádio relógio começou a tocar Beautiful Day, do U2, e simplesmente tirei ele da tomada. Depois disso já sabia que não ia na aula. Não queria ter que ver o Fernandinho. Ontem vi ele passeando com a Renata na praça no fim da tarde. Não acredito que ele prefere aquela chatinha à mim. Inventei uma dor de cabeça e principio de resfriado para minha mãe. Aí ela fez chá de limão, gengibre e mel para mim com pão na chapa. Adoro chá de limão, gengibre e mel e sou viciada em pão na chapa. Fiquei tão feliz que ajudei ela com a louça antes de me trancar no quarto para ouvir o CD novo do Helloween que o Neb me emprestou, e ler O dia do curinga. Ele não empresta nada para ninguém, mas as vezes consigo pegar alguma coisa com ele. O livro também é dele. Não sei qual é a dele comigo. Não tenho muita paciência para isso. O mundo inteiro sabe que ele quer me beijar. Quando chego perto ele fica tão perdido que não faz nada e só fica querendo me agradar. Não entendo, mas é engraçado.
Aproveitei que estava em casa e almocei mais cedo com meu pai, minha mãe e minha irmãzinha. Ela só tem três anos e todo mundo só dá atenção para ela. Não tenho muita paciência para isso. No fim acaba sendo bom, ninguém me enche o saco. Fiquei vendo televisão com ela enquanto minha mãe arrumava a cozinha. Isso e ajudar com a louça de manhã me faziam a filha perfeita. Esperei o horário da aula acabar, mais vinte minutos, e liguei para a Paula. “O Fernandinho perguntou de você.” “Porque você não mandou ele perguntar para a Renata?” “Acho que ele te viu ontem na praça.” “Não quero nem saber....vamos na casa do Neb a tarde?” “Vamos, combinei com ele na aula entre um sono e outro. Ele só dorme. Ele também disse para te avisar.” “Vou para lá daqui a pouco.” “Eu vou depois da aula de inglês.” O quarto do Neb era fora da casa, e ninguém ligava para o que a gente fazia lá dentro. Tinha televisão, vídeo cassete, som, computador e tudo que alguém precisa para ser feliz. Podia fumar até maconha. Era como um salão de festas. Amo ir lá. Falei para minha mãe que ia na casa da Paula pegar a matéria que tinha perdido e fui o mais cedo possível.
Quando entrei estava tocando uma banda que não conhecia e a televisão estava no mudo passando Entrevista com o vampiro. “O que qui tá tocando?” “Depeche Mode, um tipo depressivo da década de 80. Gostou?” “Um pouco estranho.” “Se você quiser a gente muda.” “Não precisa.” Peguei o cinzeiro de vidro e ele quase teve um treco. Tirou ele da minha mão e colocou um de plástico. Sei que sou meio desastrada, mas as vezes isso me irrita. “Porque você não foi na aula?” “Não tenho mais saco para assistir aula com aquele chato do professor de matemática.” “Eu também não. Dormi na aula dele inteira.” “Porque você não fica dormindo em casa. Acho feio dormir na sala.” “Porque eu não iria na escola dia nenhum, e não ia poder fumar um cigarro com você no intervalo.” Fumamos um antes da galera chegar e focamos no filme. Cansei de ver trechos deste filme na casa dele e nunca entendi nada. Ele fica hipnotizado falando sobre as futilidades da vida e que os vampiros são isso e pensam aquilo. Não tenho muita paciência para isso. Podíamos ir direto para a parte de comer chocolate e tomar Coca-Cola.
Não percebi o tempo passar e já passava das quatro quando a Paula chegou da aula de inglês com a Alina e o Enrolado. “Vocês não se cansam de não fazer nada?” A Alina estava meio azeda, acho que a mãe dela fala tanto isso para ela que ela começou a repetir. Não tenho muita paciência para isso. O problema da família dos outros. “Aprendi mais inglês vendo o filme com o Neb do que vocês repetindo o que o professor fala numa sala pequena e quente.” Como que prevendo que o clima podia esquentar o Neb acendeu mais um baseado, e passou para mim primeiro. Depois saiu do quarto e voltou com batatinha e refri para todo mundo. Ele colocou um VHS com uns clips gravados da MTV. Estava no meio de Do the evolution, do Pearl Jam. “Cara, este clipe é muito foda. Volta do começo.” O Enrolado sabia tudo do Pearl Jam. “Quem fez este clipe foi o mesmo cara que fazia aquele Batman que passava no SBT, sabe? E o cara que desenhou o Spawn, saca?” “Pode crer, os traços são muito parecidos. Acho muito louco a ideia dos homens sendo sugados pelo computador. Meio Matrix. Este clipe merece ser visto milhões de vezes mesmo.” Era só falar que alguma coisa que o Neb tinha que era legal e ele ficava horas contando todas as histórias possíveis e imaginárias sobre aquilo.
Aproveitei que os meninos estavam entretidos com o vídeo para saber mais sobre o passeio na praça do Fernandinho com a Renata. “Mas eles estão ficando?” Perguntei para a Paula e a Alina. As três faziam inglês juntas. “Me parece que sim. Hoje ela estava toda feliz na aula.” A Alina não fazia muita questão de manter minhas esperanças. “Nós não falamos muito com ela, só sobre coisas da aula. É difícil saber.” A Paula quis bancar a boa amiga. E ela era, a melhor. As duas começaram a falar alguma coisas sobre ter estudado com a Renata no primário e de que ela era meio quieta porque os pais dela eram separados. Não tenho muita paciência para isso. Nunca entendi qual o problema com isso. Eu ia me sentir mais especial. Seria legal ter duas casas, dois presentes de aniversário, essas coisas. Talvez eu preferisse morar com meu pai se isso acontecesse. Minha mãe as vezes pensa que sou empregada e fica me mandando limpar isso, lavar aquilo. Ela não deixa eu fazer nada que quero. “Queria que a minha vida fosse igual ao clipe de 1979 do Smashing Pumpkins”, comentou o Neb olhando para a televisão. As vezes parecia que ele sabia o que eu estava pensando. “Achei que era”, respondi para o outro lado do quarto. Ele olhou para mim e sorriu. Nunca mais quero ir embora daqui.