Um salvador inesperado

Debruçada sobre a ponte grande Elisabete observa os peixes no rio. Eles encantam a menina, que conta os peixes pelo tamanho e são muitos. São Tilápias, Acarás, Traíras, Piabinhas e simples Barrigudinhos. Na margem esquerda, em uma pequena enseada, a tonalidade da água avermelhada, indicava a presença de inúmeros futuros girinos. Logo nasceriam sapinhos e assim a reprodução da espécie estaria garantida.

Na margem direita do rio Taquaraçu, um sapo grande se postava abaixo da lâmpada da luminária para engolir os insetos atraídos pela luz. Ficava tão quietinho a observar a mariposa a voar perto da luz e de repente: Zás!!! Era uma vez um inseto voador.

Todas as tardes era assim. Elisabete esquecia de voltar para casa. Os peixinhos e os sapos a detinham por encanto. Parecia hipnotizada. Sua mãe aparecia e a levava pra casa. Era uma briga todos os dias. Mas Elisabete nem ligava. A mãe falando e parecia que a menina estava muito longe dali. Era uma técnica que ela mesma inventara. Viajava pra longe e assim nem ouvia o que a mãe dizia.

Naquele dia porém, a mãe não apareceu. Elisabete percebeu que já estava escuro quando o sapão começou a comer muitos insetos. A luz parecia mais forte. O barulho de grilos e cobras piando abaixo da ponte somado ao silêncio da falta das crianças e transeuntes, além dos carros que rarearam aquela hora, fez com que notasse que já não era cedo. Não tinha relógio de pulso e nem celular para olhar as horas.

Resolveu sair dali o quanto antes. Correu apressada pelas ruas e subiu a escadaria “São Pedro” às pressas, quase correndo, pois não tinha fôlego para essa façanha. Quando virava a segunda esquina da escadaria, composta de três esquinas, avistara sentado no último degrau o homem que as crianças temiam. Esperou que ele não a tivesse visto ainda e desceu com cuidado, andando de ré, pra ver os movimentos dele. Como se lesse seus pensamentos, o homem levantou-se e começou a descer a escadaria devagar com o olhar fixo nela.

Elisabete virou de costas e desceu o mais rápido que pode. Virou a esquina ao pé da escadaria e começou a correr. Já estava chegando a um ponto de ônibus quando o homem terminou de descer. Ele olhou pra esquerda primeiro e assim deu tempo pra ela esconder-se. Sentou-se atrás do banco do ponto de ônibus e ali ficou quietinha quase sem respirar. Do pé da escadaria não dava pra ver o ponto de ônibus. Talvez o homem desistisse de achá-la.

Não sabendo as horas ela somente se deu conta de que o tempo passara, quando o ônibus para Aracruz das 21 horas parou, e o velho vigia da torre desceu como sempre. Ele chegava em casa sempre nesse horário e era vizinho de Elisabete. Quis levantar e correr atrás dele mas ficou com medo dele também. Não o conhecia muito bem. Aquela barba malcuidada lhe causava arrepios. Era novo na cidade e por isso ela não sabia se podia confiar nele. Dele só sabia que era vigia e viera de Aracruz morar na casa da velha senhora que morrera de velhice.

Depois que o velho se foi o silencio reinou. Ficou imóvel por tanto tempo que acabou cochilando. De repente o silêncio da noite foi quebrado pelos passos de alguém que vinha na direção do ponto de ônibus. Quase deitada no chão atrás do banco, ela observou que era o homem feio. Ele sentou no banco e começou a chorar.

Por essa ela não esperava. O homem falava sozinho!!! A luz do poste em seu rosto ilustrava porque as crianças tinham tanto medo dele. Era horroroso. Tinha uma cicatriz no lado esquerdo que lhe tomava quase o lado inteiro do rosto. Ele chorava e dizia:

_Porque ela fugiu de mim? O que eu fiz pra ela? Eu sou bonzinho e elas sempre fogem de mim!

O homem olhou pro céu e disse:

_Mamãe, você não fugiria de mim não é? E levantou-se caminhando pela rua a soluçar. Até Elisabete perdê-lo de vista.

Elisabete levantou e seguiu pro outro lado. Aquele homem morava perto da casa dela mas queria chegar antes dele em casa. Subiu o mais rápido que pode a escadaria e foi pra casa. Chegando lá sua mãe não estava em casa. Entrou com a chave reserva que estava sempre embaixo do tapete e foi direto pro banho. Após o banho jantou a comida que ainda estava quentinha e foi dormir. Não sabia onde a mãe estava mas não queria ouvi-la brigar com ela.

Acordou com vozes na sala. Alguém chorava e alguém consolava. Não reconheceu a voz da segunda, mas sua mãe era com certeza a que chorava. Bateu um medão de que ela fosse a causa do choro da mãe. Será que não tinha visto que ela voltara? Levantou e foi ter com elas.

A mãe foi ao encontro dela e a abraçou. Não era ela o motivo do choro porque a mãe continuou chorando. O motivo era outro. O pai de Elisabete havia desaparecido. Deixara o trabalho naquela tarde e não voltara pra casa. Sem ele as coisas não seriam fáceis para elas. Eram só os três. A mãe nunca trabalhou fora. O pai dava conta de pagar as contas. Ela era muito novinha ainda, só tinha dez anos de idade. O que seria dela e da mãe agora?

Sentou-se na varanda da casa e pôs-se a chorar. Do outro lado da cerca o homem feio a observava. Tentou falar com ela mas ela fugiu como sempre.

Daquele dia em diante o homem tentara lhe falar de todo o jeito mas ela sempre fugia. Era só ficar sozinha que ele vinha logo. Queria se livrar dele mas não sabia como.

A mãe de Elisabete começou a trabalhar na casa de uma amiga pra ganhar algum dinheiro. E ela estava sempre sozinha. Já fazia uma semana nesta situação.Um dia, sentada na varanda da sua casa, achou que ali ele não poderia lhe fazer mal e então esperou que ele viesse. Ele apareceu, ficou de frente para o muro olhando para ela. Ela olhou pra ele de onde estava, e disse:

_Bom, o que o senhor quer falar comigo afinal?

_Menina vai ouvir?

_Sim pode falar.

_Eu sou bonzinho. Menina não precisa fugir de mim.

_Sei, então fala.

_Menina pode ajudar eu a cuidar do homem doente que eu achei na escada?

_Que homem?

_Homem que caiu da escada. Eu trazeu ele pra meu casa e dar água pra ele, mas não bebe água.

_Quem é o homem?

_Eu não sei. Papai do céu disse pra ajudar todos. Mamãe falou pra eu.

_Como sabe que ele está vivo?

_Homem respira alto. Fala muito e tá muito quente.

_Deve estar com febre. Vou falar com minha mãe e ela vai ajudar mas ela só vem a noite pra casa.

_Homem tá doente. Muito doente. Minha mãe ficou doente e Papai do céu levou ela. Será que ele vai levar o homem também?

_Acho que sei quem chamar. Espera um pouco. Entrou em casa e pensou em sair pra chamar a comadre da mãe do outro lado da rua, mas ficou com medo do homem feio. E ficou esperando a mãe chegar.

O homem feio cansou de esperar e foi pra casa. Quando a mãe chegou em casa, Elisabete falou pra ela o que havia acontecido e ela resolveu ajudar o homem.

_Sabe lá minha filha? Pode ser até alguém conhecido. A gente nunca sabe o que aconteceu com seu pai. E se alguém o tivesse ajudado ele não teria sumido. E foram pra casa do homem feio. Chamaram e ele veio. Estava suado e com a camisa aberta. Seu rosto assustava a gente, mas a mãe não teve medo dele. Ela foi entrando e quando viu o homem que estava deitado no sofá do homem feio deu um grito.

_Jesus do céu!!!

Elisabete correu pra dentro e ficou com o coração aos pulos. Era seu pai.

Elas o levaram para o hospital. Ele se recuperou a custa de muito remédio e cuidados médicos, mas o médico falou que se não fosse os cuidados do homem feio ele teria morrido.

Mais tarde ele contou o que havia acontecido. Ele caiu em um lugar entre as esquinas da escadaria e desmaiou. Lá ninguém o enxergaria. O homem viu porque estava sempre sentado naquele degrau onde vê tudo o que acontece ali.

Elisabete hoje aprendeu na escola que existe a inclusão escolar e que devemos amar as pessoas pelo que são. Mas ela também aprendeu que as pessoas não precisam ser más só porque tem um defeito ou são feias.Ela também sabe que a beleza não significa exatamente bondade e se tornou a melhor amiga do homem feio que na verdade se chama Rafael.

Ele é apenas um homem com Síndrome de Down e outros problemas físicos e não faz mal a ninguém. Rafael sofreu queimaduras quando criança e por isso tem aquela cicatriz enorme no rosto. Sua mãe conseguiu aposentadoria pra ele antes de morrer. Ele foi o anjo que salvou o pai de Elisabete. Foi considerado herói por todos. Elas resolveram adotar o Rafael. Ele tem sua própria casa mas elas cuidam de tudo o que ele não consegue cuidar. É muito prestativo e elas conseguem muitas tarefas pra ele ganhar seu próprio dinheirinho, pois o aposento dele não dá pra muita coisa. Fica fácil arranjar trabalho pois ele é muito inteligente. Vivem muito bem e até hoje Elisabete contou a pelo menos quinhentas pessoas que ele é muito legal. Ele nunca mais chorou. Agora ninguém foge dele. Ele vai a escola todos os dias levar e buscar Elisabete. Observam os peixinhos juntos, mas voltam logo pra casa contando estórias e falando com todos que encontram pelo caminho e os param pra cumprimentar Rafael. Eles o chamam de herói, mas Elisabete o chama de Anjo Rafael o salvador inesperado.

Nilma Rosa Lima
Enviado por Nilma Rosa Lima em 09/06/2015
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