Cobradores

Eu queria falar com o senhor Fernando.

O senhor ta no céu, mas com o Fernando você já ta falando.

Senhor Fernando, o senhor está devendo pro cartão tal o valor de tanto.

E? (...)

O senhor pretende pagar quando?

Mocinha, você está pulando etapas. Primeiramente você deveria procurar

saber se eu tenho condições e se vou querer pagar. O quando vem depois.

(Silêncio)

É, (...) o senhor tem condições ou vai querer pagar?

Condições eu tenho que avaliar minhas prioridades. Mas vamos ao

querer. Quando eu parei de pagar a dívida o valor era menos que três

vezes desse que você me informou. Porque?

Juros e correção monetária.

Mas são juros que nos remetem a eras de cruzados e cruzeiros novos e velhos.

O que?

Ah! Deixa pra lá. Você certamente não passou por isso. Mas me diga uma

coisa: O que vai acontecer se eu não pagar?

Seu nome vai ficar sujo. Vai pro pau, pro CDL, pro Serasa...

Sim, mas além da situação higiênica e sexual do meu nome, quais

exatamente serão as conseguências?

O senhor não vai poder fazer compras a prazo, por exemplo.

Quer dizer que se minha mulher ver aquele vestido caríssimo na vitrine do shopping, desejá-lo a qualquer custo e eu não tiver dinheiro, eles não vão me vender o vestido?

De jeito nenhum.

Hum.

(Silêncio)

Qual o seu nome?

Marta.

Gostei de você. Vou te chamar de Martinha, tudo bem?

(Silêncio)Tu... tudo.

Me diga Martinha, e o que mais pode acontecer?

Cartão de crédito, por exemplo, já era.

Quer dizer que, não tendo dinheiro, não adianta mesmo eu querer levar a família naqueles restaurantes caros, que o cartão não vai passar?

Sem chances.

Hum.

(Silêncio)

Mais Martinha! Mais! Por favor.

O senhor também não poderá fazer financiamentos.

Quer dizer que ir na concessionária e trocar meu carro por um zero e financiar o restante, jamais?

Jamais. O Sr ficará sem crédito na praça.

Então Martinha, quer dizer que ninguém vai ficar me ligando oferecendo cartões de crédito, empréstimos e financiamentos?

Tudo isso acaba para o senhor.

Quer dizer que eu só poderei viver com o que ganho em dinheiro?

Sim, seria isso.

Martinha, assim você acaba com meu casamento.

Como assim senhor?

Você resolveu todos os meus problemas e eu estou apaixonado por você. Vou me separar da minha mulher agora.

O senhor ficou louco?

Mas você foi um anjo que caiu do céu. Eu e minha mulher somos

extremamente perdulários, isso é uma doença da qual nunca conseguimos nos livrar. Boa parte dessa dívida de cartão foi passada em consultórios psiquiátricos. E agora vem você e me mostra uma solução simples e infalível. Só poder comprar a dinheiro, viver somente com o que ganho, não gastar o que não tenho, quem sabe até dormir um dia tranqüilo. Martinha eu te amo.

(O telefone é desligado)

Eu quero falar com a Martinha.

Quem ta falando?

È o Fernando, porque você desligou Martinha?

Como o senhor sabe o telefone daqui?

Tenho bina Martinha. Escuta menina, quando é que vai acontecer aquilo?

Aquilo o que?

De chafurdarem meu nome na lama? Isso está me deixando excitado.

O senhor não pagando, uns quinze dias.

Ah Martinha, brochei pô. Da uma forcinha, que tal amanhã.

Sem chances senhor, tem os procedimentos...

Semana que vem então? Da um jeito Martinha, me ajuda.

Vou ver se apresso aqui, mas não garanto não.

Se você conseguir até segunda te dou cem reais.

Assim o senhor me ofende.

Que isso Martinha, é pela nossa amizade.

(O telefone é desligado novamente)

A Martinha por favor.

É, É, quem...

Ô Martinha sou eu mesmo. Sacanagem em Martinha, você não me avisou pô.

Como assim senhor?

Fui prum boteco no bairro, que não aceita cartão, comemorar com amigos minha nova condição e o Marcão me falou que em cinco anos tudo volta; limpam o meu nome sem eu nem precisar pedir. Deprimi Martinha.

É isso mesmo, cinco anos e tudo limpinho de novo.

Faz isso não Martinha, meu coração não agüenta. Olha aqui, vou te

fazer uma proposta honesta heim. Te dou mil reais pra você deixar meu nome borrado pra sempre.

(Tum, tum, tum, tum, tum...)

Nota: O homem não desistiu e passou a ligar para a Martinha sem parar implorando para que ela conseguisse o negócio. Através de amigos influentes conseguiu o celular e o fixo da menina. Ligava de madrugada, finais de semana e não aceitava a idéia de ter seu nome limpo novamente. Ela se demitiu do serviço, mas não adiantou, ele cismou que ela tinha poder para eternizar aquela condição.

Resultado: Martinha foi internada num hospício. Mas não ficou por aí não. Quando recebeu a notícia que um tal de Fernando vinha visitá-la. Ela, na tentativa de pular o muro do manicômio, morreu eletrocutada.

Fernando Tamietti
Enviado por Fernando Tamietti em 14/06/2007
Reeditado em 31/05/2010
Código do texto: T526561
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