Las Tapas de Cuadril
Invariavelmente, toda vez que eu ia ao açougue comprar o miolo da alcatra do almoço da sexta-feira, quando os magarefes já me aguardavam de “baioneta calada”, surgia, de trás da máquina registradora e em total solicitude, aquela figura bizarra, um argentino deste tamanho, o “Senhor Entrementes”.
Como de costume, eu aproveitava logo para provocá-lo, perguntando-lhe como estava a picanha, o contrafilé...
- Senhor, como já sabes, inclusive, como todos que aqui frequentam, as nossas carnes têm procedência nobre. Entrementes... Pronto. Aquele vinha sendo o tom frequente do seu bordão dos últimos doze anos: “Entrementes”, a sua ressalva de cabeceira. Seu nome de batismo era Asclepíades. Asclepíades Mendonza Barata, mas por conta daquela constante repetição, todos que moravam por ali o tratavam simplesmente como seu Entrementes.
No caso da abordagem das carnes, sempre nos corrigia, inicialmente, entre irônico e malicioso, mas no final da manhã, já colérico e em um tom ufanista: - “Senhor, entrementes... Que miolo de alcatra, que nada! Nem picanha, nem contrafilé, essas invencionices daqui; pero si, nuestros patrícios hablan cuadril, tapa de cuadril e bife ancho, tú entiendes?" - Isso era o bastante para que, logo, logo, outros que aguardavam atendimento fossem também experimentando o gostinho de mexer com o gringo:
- E aí, seu Entrementes, salta pra mim um quilo de ponta de agulha!
- Nicanor, prepara um quilo de vacio para freguês...
-Dois quilos de cupim, seu Entrementes...
- No tengo estas excrescências, no senõr!
- Quero um quilo e meio de sarapatel, seu Entrementes.
- Vaya tomar por el culo! ”
Em um dia de pouco movimento, porém, vi o seu Entrementes de cabeça baixa lá atrás da máquina registradora e estranhei por ele assim permanecer, apesar de ouvir as nossas vozes, não se levantando ou acenando, como de costume. Fui até o outro lado do balcão, me aproximei e perguntei se estava tudo bem, se estava precisando de alguma coisa. – Lembranças de mi país – respondeu-me, com a voz bastante embargada. Aproveitei para lhe perguntar o que o fizera vir para o Brasil... vacilei, mas emendei: depois de certa idade. Contou-me que era um patagão, mas que amava de paixão mesmo era a Buenos Aires de Peron, de Evita, e que, entrementes... “estaba en Brasil para olvidar un gran amor”.
Aquela declaração me deixou bastante perturbado; foi uma grande surpresa para mim ouvir daquele homem de setenta e tantos anos e ainda com aquele brilho no olhar que sofria por amor. Inventei uma desculpa qualquer e me despedi, eu não aguentaria, iríamos chorar juntos. Melhor ouvir um tango argentino – pensei.
No dia seguinte após aquela conversa, precisei viajar a negócios e, um mês depois, quando voltei, já era carnaval e a cidade estava transfigurada. O acesso pelas ruas até o centro onde eu morava estava todo mudado, com desvios e piquetes sinalizando novo trânsito; havia camarotes espalhados por todo canto e grandes outdoors de propaganda de cerveja pendurados nos prédios comerciais, além daquela música ensurdecedora... menininha bonitinha, gosto muito de você! – Quase me enlouquecendo. Apesar de ter voltado de táxi, eu e o motorista tivemos dificuldades de locomoção. Daí, pensei: o Boi nos Aires, açougue do seu Entrementes, fica aqui perto. Paguei o táxi e resolvi ir andando até lá, pois estava com pouca bagagem e dali até a minha casa era um pulo.
Quando dobrei a esquina e fui me aproximando do... Cadê o Boi nos Aires? – Exclamei.
Incrédulo, li em letras garrafais: AGUARDEM AQUI NESTE ESPAÇO: LAS TAPAS DE CUADRIL, LAS CHICAS MÁS ARDIENTES DA TIERRA DEL FUEGO.
Eu soube ali mesmo da vizinhança que a Leonor, uma legítima mulata baiana e ex- BBB, teria sido a causa daquela mudança. No período do meu afastamento, com a proximidade do carnaval, os dois se conheceram, se apaixonaram e resolveram fechar o açougue, criando, no seu lugar, uma casa noturna de shows eróticos.
Pensei em perguntar ao seu Entrementes se ele tinha perdido o juízo, onde já se vira isso: com tantas mulheres esculturais dando sopa aqui em Salvador, importar mulheres “fogosas” logo da Patagônia, uma região fria, erma e... Mas nada falei; aproveitei aquela música alucinante para tomar um cravinho no bar do Tonho e refletir sobre a famosa frase do Blaise Pascal: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”. Mais tarde, depois de uma meia dúzia de cravinhos, me deu foi uma vontade danada de conhecer as chicas, LAS TAPAS DE CUADRIL.