ME DÁ UM LITRO DE QUEROSENE
É bom que eu me apresse em justificar a intencionalidade da flagrante afronta à gramática da língua portuguesa, ao iniciar o título sobre o qual pretendo discorrer, com pronome oblíquo átono. Não se trata de uma afronta gratuita, constituindo sim, na saudosista intenção de reproduzir um linguajar coloquial e corriqueiro, sobretudo em meados do século XX.
Oriundo de uma família pobre e nascido de um parto realizado por parteira, a chamada cegonha, na própria casa na qual vivi com meus familiares, até me casar, no bairro de Santa Efigênia, região suburbana da cidade de Belo Horizonte – Minas Gerais, aos 23 de outubro de 1956, era próprio da época, ser protagonista ou se deparar com a situação revelada pelo título.
Como naquele tempo a energia elétrica era inexistente ou precaríssima, principalmente nos bairros situados fora do perímetro da Avenida do Contorno, as casas dispunham de candeeiros ou lamparinas, com as quais era possível a manutenção do mínimo de luminosidade, para o exercício das poucas atividades noturnas da época.
Por esse motivo era corriqueiro encontrar, logo na entrada de todo armazém, quitanda e de vários estabelecimentos comerciais, um barril de 200 litros, contendo querosene para revenda a granel, disposto junto à porta de acesso daquele comércio.
Como, felizmente, não existiam descartáveis, o cliente – na época, denominado freguês, levava a sua garrafa ou recipiente e pedia: ___me dá um litro de querosene!
O comerciante abria a torneirinha localizada próximo à base do barril, enchia o recipiente do freguês e este pagava de imediato, ou solicitava que fosse anotado na caderneta.
De posse do precioso líquido, o menino (essa era uma tarefa normalmente confiada a uma criança) retornava à sua casa e os candeeiros ou as lamparinas eram reabastecidas.
As atividades noturnas eram mínimas e consistiam em cozinhar, tomar banho de caneca ou de bacia, alimentar-se, ler pequenos trechos de livros religiosos, aí incluída a Bíblia Sagrada.
Aproveitando a penumbra, os mais velhos aterrorizavam as crianças com muitos, muitos causos e contos assustadores de mula-sem-cabeça, lobisomem, homem do saco etc.
Para essas atividades e para as parcas exigências laborais e intelectuais de um tempo em que o labor era encerrado com o chegar da noite, as frágeis e oscilantes chamas dos candeeiros e das lamparinas até que atendiam bem. Mesmo porque, naquele contexto de pobreza, não se conhecia nada melhor.