Senhoras do Agreste
O anfitrião surge no portal que separa sala e cozinha e faz o convite. - Levanta gente! Vamos ao lançamento do meu barco. Atravessamos a porta de trás, seguindo pelo quintal até a pracinha na lateral da propriedade, um pequeno sítio no agreste pernambucano, sem plantações, fruteiras ou criação, apenas, animais domésticos, além de um cavalo e duas éguas de apreço.
Meu Deus, como se pode viver nesse solo rochoso e esturrado? A estadia de um final de semana é razoável, mas a permanência, necessidade ou ousadia. Gostaria de conhecer o porquê desse nome de batismo e posse do imóvel, mas não devo perguntar, não seria amável com Dionísio neste momento de festa.
O chão, ontem seco, está úmido pela chuva miúda dessa manhã de sábado. O céu embaçado, quase sem lua e a precária iluminação permeiam pés de algaroba, dois bancos de madeira e os três equídeos, que ao largo e em silêncio, acompanham o cortejo. Sapos, cururus prisioneiros do excesso de peso, se deslocam em saltos curtos e rãs saltitam festivas, atraídas pela rara umidade.
Nesse clima seco, onde se abrigam esses anuros? Parecem frágeis, mas tão fortes quanto as criaturas humanas desse povoamento, que, sequer imaginam a origem de suas existências nesse local. Nossos antepassados, tangidos pelos lençóis verdes do plantio da cana de açúcar na zona da mata, açoitados pela invasão holandesa e guerra dos Mascates abriram caminho para o Sertão do Estado em busca da sobrevivência. Aqui, não deveriam estar e por mais que executem a dança da chuva, elas não cairão nesse torrão, que com tanto sol e ventos, o local poderia servir, apenas, como gerador de energia limpa.
Sete gansos que nadavam na rasa lâmina d’água da fonte circular, desconfiados com a comitiva, saltam à borda e se mantém em alerta. O convidado, de mais idade, senta e prepara o celular para registrar o evento. Dionísio dobra os joelhos e com cuidado repousa o barquinho no chão. Aciona as luzes: um farol de luz branca e outra que pisca e muda de cor. É encantamento para crianças de qualquer idade. Barco sobre a água, o controle remoto é acionado. A embarcação, assim pode ser nomeada, por atingir um metro de comprimento e meio de largura, acelera em voltas. Os gansos em fila única se afastam em silêncio. Param e observam por algum tempo, talvez no esforço de compreensão da cena extraordinária e depois se abrigam em distância segura. A plateia é convidada ao manuseio do controle, mas só após insistência, metade se atreve e dois resistem, talvez por insegurança ou surpreendidos pela oferta. Afinal, o custo das peças compradas no sul do país e o significado emocional para Dionísio, confronte o senso crítico do grupo de média de setenta e três anos de idade. Depois de algumas batidas contra a parede, que não resultam em danos, fotos, filmes e elogios são postados em redes sociais, enquanto a obra e criador retornam à oficina. Ele acompanhado de uma dose de uísque e da alma criança, que nos acena, através do brilho do olhar. Os outros se dirigem ao casarão, onde são aguardados por uma mesa de carteado. Na companhia de duas garrafas de vinho e petiscos seguem até a manhã seguinte, denunciada pela claridade e passagem de religiosos. Os católicos instigados pelo sino, à missa. Os evangélicos de paletó, gravata e bíblia sob o braço, ao culto dominical.
Fé, o abrigo desse povo. Crença que debocha a inocência dessa gente, colocando Deus como gestor de suas vidas, impedindo a compreensão sobre a finidade da Terra e escassez de recursos. De olhos abertos ao credo e fechados à realidade, não percebem compor o exército de milhões de pobres, produtores de riquezas através da força do labor para a manutenção dos ricos. Minha atenção no jogo é cobrada pelo parceiro.
A extensão do olhar, da casa grande para a propriedade, completa o cenário da manhã de domingo. Parado atrás da cerca e de frente para a rua, o cavalo assiste passivo a movimentação dos fiéis. As éguas caminham. A mãe, focinho rente ao chão, à procura de broto de capim. A filha, de supetão, parte como foguete de um canto a outro da cerca e no meio do caminho, dispara um coice no ar. Os gansos voltaram a nadar. Sapos e rãs retornaram aos esconderijos. As algarobas, senhoras da elegância, vestindo o tradicional terno verde, saúdam o chuvisco de ontem.
Publicada na antologia - Memórias & Passagens de um Tempo/Scortecci
O anfitrião surge no portal que separa sala e cozinha e faz o convite. - Levanta gente! Vamos ao lançamento do meu barco. Atravessamos a porta de trás, seguindo pelo quintal até a pracinha na lateral da propriedade, um pequeno sítio no agreste pernambucano, sem plantações, fruteiras ou criação, apenas, animais domésticos, além de um cavalo e duas éguas de apreço.
Meu Deus, como se pode viver nesse solo rochoso e esturrado? A estadia de um final de semana é razoável, mas a permanência, necessidade ou ousadia. Gostaria de conhecer o porquê desse nome de batismo e posse do imóvel, mas não devo perguntar, não seria amável com Dionísio neste momento de festa.
O chão, ontem seco, está úmido pela chuva miúda dessa manhã de sábado. O céu embaçado, quase sem lua e a precária iluminação permeiam pés de algaroba, dois bancos de madeira e os três equídeos, que ao largo e em silêncio, acompanham o cortejo. Sapos, cururus prisioneiros do excesso de peso, se deslocam em saltos curtos e rãs saltitam festivas, atraídas pela rara umidade.
Nesse clima seco, onde se abrigam esses anuros? Parecem frágeis, mas tão fortes quanto as criaturas humanas desse povoamento, que, sequer imaginam a origem de suas existências nesse local. Nossos antepassados, tangidos pelos lençóis verdes do plantio da cana de açúcar na zona da mata, açoitados pela invasão holandesa e guerra dos Mascates abriram caminho para o Sertão do Estado em busca da sobrevivência. Aqui, não deveriam estar e por mais que executem a dança da chuva, elas não cairão nesse torrão, que com tanto sol e ventos, o local poderia servir, apenas, como gerador de energia limpa.
Sete gansos que nadavam na rasa lâmina d’água da fonte circular, desconfiados com a comitiva, saltam à borda e se mantém em alerta. O convidado, de mais idade, senta e prepara o celular para registrar o evento. Dionísio dobra os joelhos e com cuidado repousa o barquinho no chão. Aciona as luzes: um farol de luz branca e outra que pisca e muda de cor. É encantamento para crianças de qualquer idade. Barco sobre a água, o controle remoto é acionado. A embarcação, assim pode ser nomeada, por atingir um metro de comprimento e meio de largura, acelera em voltas. Os gansos em fila única se afastam em silêncio. Param e observam por algum tempo, talvez no esforço de compreensão da cena extraordinária e depois se abrigam em distância segura. A plateia é convidada ao manuseio do controle, mas só após insistência, metade se atreve e dois resistem, talvez por insegurança ou surpreendidos pela oferta. Afinal, o custo das peças compradas no sul do país e o significado emocional para Dionísio, confronte o senso crítico do grupo de média de setenta e três anos de idade. Depois de algumas batidas contra a parede, que não resultam em danos, fotos, filmes e elogios são postados em redes sociais, enquanto a obra e criador retornam à oficina. Ele acompanhado de uma dose de uísque e da alma criança, que nos acena, através do brilho do olhar. Os outros se dirigem ao casarão, onde são aguardados por uma mesa de carteado. Na companhia de duas garrafas de vinho e petiscos seguem até a manhã seguinte, denunciada pela claridade e passagem de religiosos. Os católicos instigados pelo sino, à missa. Os evangélicos de paletó, gravata e bíblia sob o braço, ao culto dominical.
Fé, o abrigo desse povo. Crença que debocha a inocência dessa gente, colocando Deus como gestor de suas vidas, impedindo a compreensão sobre a finidade da Terra e escassez de recursos. De olhos abertos ao credo e fechados à realidade, não percebem compor o exército de milhões de pobres, produtores de riquezas através da força do labor para a manutenção dos ricos. Minha atenção no jogo é cobrada pelo parceiro.
A extensão do olhar, da casa grande para a propriedade, completa o cenário da manhã de domingo. Parado atrás da cerca e de frente para a rua, o cavalo assiste passivo a movimentação dos fiéis. As éguas caminham. A mãe, focinho rente ao chão, à procura de broto de capim. A filha, de supetão, parte como foguete de um canto a outro da cerca e no meio do caminho, dispara um coice no ar. Os gansos voltaram a nadar. Sapos e rãs retornaram aos esconderijos. As algarobas, senhoras da elegância, vestindo o tradicional terno verde, saúdam o chuvisco de ontem.
Publicada na antologia - Memórias & Passagens de um Tempo/Scortecci