Pendurando as Chuteiras

É o tipo de caso que ninguém acredita. Eu mesmo só acreditei porque conheço bem o pessoal daquele lugar e já presenciei muitas situações insólitas com aqueles personagens malucos. Tipo o Valdão, que após um corte no dedo, alguém lhe disse: "chupa que para de sangrar". E ele respondeu: "De jeito nenhum. E se tiver com aids?".

Mas o negócio todo aconteceu foi na quadra de areia do Juninho. Aliás "areia" é uma definição apenas por semelhança. Eu já joguei bola lá e posso confirmar; é lasqueira mesmo. A quadra é tão pequena que não tem espaço pra lateral. É um murozinho de meio metro seguido de uma tela onde a bola - e os jogadores - batem e voltam pro jogo. Parece mais uma arena.

Outro agravante é a condição física e neurológica da maioria daqueles atletas. Primeiramente eles não respeitam a ordem das coisas; pois começam a comemorar a vitória, ou lamentar a derrota, no bar, antes mesmo do início do jogo. Quando finalmente chegam na quadra pra mostrarem sua arte, já estão bebadozinhos.

Foi assim que o Irineu, após uma gorda feijoada, ébrio feito um peru de véspera, e mais pesado que a idade, entrou em jogo naquela ensolarada tarde de sábado.

Começou a partida e ele acompanhava todos os lances com os olhos. Lógico que ele era atacante. A maior dificuldade do jogo era quando saía gol do adversário e ele tinha que voltar da banheira; perdia-se uns cinco minutos nesse processo. Tirando duas vezes que a bola bateu nele, dir-se-ia que estava apenas fazendo número. Número nove por sinal.

Aí, num confuso ataque do adversário, a bola espirrou lá da defesa e sobrou pro Irineu; ali ó, na cara do gol. Ele ainda olhou em volta pra se certificar que ninguém poderia chegar no lance. A bola estava parada esperando pelo chute - como se tivesse sido colocada com as mãos. Mais fácil que penal. Sem contar que, no momento do lance, o goleiro estava atrás da trave tomando um gole na latinha de Skol.

Irineu não teve dúvida, partiu em disparada. A bola estava a uns dois metros do seu pé. Nunca se viu tamanha convicção num homem. Todos pararam para acompanhar o lance histórico. Menos o goleiro que tentava proteger a latinha atrás da trave.

Aí aconteceu a tragédia. O Irineu desabou a um metro da bola.

Todos correram pra acudi-lo. Havia desmaiado. Criou-se uma comissão tirada no palitinho para levar os 120 quilos dele pro carro do Toninho. Chegou vivo no hospital.

Especulava-se sobre ataque cardíaco, indigestão ou coisa que o valha. Todos estavam preocupados com o artilheiro.

Foi somente à noite, quando o Toninho chegou do hospital, que se teve às primeiras notícias. Anunciou para o espanto de todos no bar:

- O Irineu quebrou as duas pernas e os dois braços, mas tá bem.

Poucos tiveram a chance de vê-lo mumificado - espetáculo permitido apenas para os mais íntimos. Conta-se que era difícil não dar risada olhando pra ele imóvel, todo engessado, com os braços estendidos. Pra criança então não tinha nada melhor.

Depois disso o Irineu nunca mais se aventurou na arte do futebol. Não queria nem assistir as peladas dos amigos. Ficou desgostoso mesmo. Preferia ficar no boteco só tomando cerveja. Dizia que o joelho é que tava podre. Mas a gente sabia que era por vergonha mesmo. Também, não é pra menos, tropeçar nas próprias pernas e ainda sem marcação nenhuma. Pô Irineu!

Fernando Tamietti
Enviado por Fernando Tamietti em 13/06/2007
Código do texto: T525383
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