O BONECO DE CELULOIDE

Desde o primeiro dia que o viu, quando chegou no colo de sua mãe que montava um belo cavalo e o trazia no cabeçote da sela, deste então a menina não pensava em outros brinquedos, tantos brinquedos desejados no silêncio de seu coração, já que na sua inocência percebia que seria impossível tê-los um dia, pois, pensava, sendo tantos os irmãos, como o papai conseguiria dinheiro para trazer da cidade um presente para cada um deles?... Ela não se sentiria à vontade para expressar seu desejo de possuir este ou aquele brinquedo, o papai trabalhava duro todos os dias, de roça em roça, de barcaça em barcaça, inspecionando os trabalhos, dando ordens aqui e acolá, incentivando o tropeiro a revistar as ferraduras dos animais, o vaqueiro a prender os bezerros mais cedo para que não mamassem à noite a fim de que pela manhã, na ordenha, as tetas das vacas estivessem cheias de leite que era alimento essencial para os seus e os filhos dos trabalhadores da fazenda. Como então manifestar a alguém o seu desejo de ter um brinquedo?

Porém desde que viu aquele boneco tão grande, no cabeçote da sela com os braços de Leda à sua volta enquanto suas mãos seguravam as rédeas e guiava o animal, desde aquele momento apaixonou-se pelo boneco, passou a desejá-lo com todas as forças do seu coração. Leda saltou do cavalo segurando-o de qualquer jeito e subiu as escadas e a menina pensou: quem sabe ela não deixará ele aqui em casa alguns dias, quem sabe, não o dará de presente para a afilhada de D. Libúrcia, sua mãe? D. Libúrcia sempre tratou a afilhada com grande afeto... E tanto carinho!...

Era de celuloide, devia medir pelo menos 50 centímetros de altura, muito corado, rechonchudo, cabeça redondinha e sem cabelos, olhos grandes e redondos, orelhas de bom tamanho, um lindo nariz, boca fechada, mas parecendo sorrir com aquelas bochechas salientes. Estava sem roupas (mãe mais desleixada, essa Leda) e a menina observou que ele não tinha um pintinho como tinham seus irmãos e os menininhos da fazenda que nos primeiros anos de vida só vestiam alguma roupa à tardezinha após o banho para dormir. Diferentes das meninas pequeninas que usavam calcinhas.

A menina achou lindos aqueles braços e pernas cheios de dobrinhas, mãos e pés perfeitos. O boneco, se deitado permanecia com as pernas dobradas e os braços como que oferecendo-se para ser pegado ao colo, igual aos bebês de verdade, seus irmãos e sobrinhos, que não gostavam de ficar quietos no berço e berravam exigindo colo, uns dengosos que não sossegavam. A menina deduziu que aquele boneco era mais bonito do que todos os bebês que viviam na fazenda e prometeu a si mesma que quando fosse seu iria deixá-lo sempre vestido com um calção, embora ele não tivesse um pinto para esconder.

Durante toda a visita de Leda, seus pais e sua irmã, a menina quedou-se em contemplação àquele boneco, sua timidez não lhe deixou pedir para segurá-lo um pouquinho, mas não desviou o olhar um minuto sequer, encantada que estava com o tamanho e beleza do brinquedo. Como gostaria de perguntar se ele tinha um nome, se já fizeram o batizado de brincadeira dele, se tomava banho no rio com ela, mas cadê coragem? Melhor esperar que fosse seu e faria por ele tudo o que Leda lhe negara até então, principalmente carinho; achava Leda uma desnaturada!

As visitas foram embora levando consigo aquele tesouro e o coração da menina doeu. Doeu tanto que a deixou macambúzia num canto, ou apoiada ao balaustre, até que foi chamada para tomar banho, jantar e dormir. Lembrou-se que não fora conferir se todos os pintinhos estavam perto ou embaixo das galinhas, se os frangos pequenos conseguiram subir para o poleiro, se as galinhas chocas não estariam em ninhos trocados e se Tiro, o frango seu amigo, ainda implume, ao subir para o poleiro conseguiu escapar sozinho das bicadas do galo e das galinhas velhas.

Embora sempre a pensar no boneco de celuloide, não abandonou o seu amigo, o frango Tiro e a Gercina, sua boneca de pano, com longas tranças negras e boca vermelha que ganhara há tempos de presente da Cristina, uma senhora amiga, que a fez especialmente para ela. Gercina e Tiro sempre foram seus amigos e confidentes. Com Tiro conversava muito enquanto o alimentava com restos do almoço e com milho quebrado que ele adorava. Tiro nunca saia de perto dela.

Enquanto Gercina, a boneca de pano, permanecia menina, Tiro crescia. E se tornou um belo e forte galo pedrez com um gracioso topete... Acontece que no terreiro com centenas de galinhas só tinha lugar para um galo. A menina não entendia porque aquele galo de penas pretas mescladas com um vermelho-cor-do-sol tanto perseguia o Tiro e outros como ele mais novos. Ela começou a temer pelo futuro do seu amigo, pois logo chegaria o mês de setembro. E quando setembro chegava, lá pelo dia 25 seu pai costumava levar galinhas e porcos, mais do que o normal, para Itajuipe, onde morava o dono da fazenda. Toda a cidade havia esperado o ano todo para a grande festa dos Santos Cosme e Damião, na residência do fazendeiro que fazia questão de oferecer para os amigos e para toda gente da cidade, delicioso caruru, e não economizava.

Agora que cresceu, Tiro pouco a visitava, chegava, comia os restos do almoço e logo saía para correr atrás das galinhas. Com aquelas canelas tão compridas era fácil alcançá-las. Difícil era o velho galo não aparecer irado e atacá-lo.

Num sábado de final de setembro a menina acordou e foi para o terreiro ver os animais. Os cachorros se espreguiçavam ao sol, porcos já comiam mandioca e bananas, os bezerros, no curral ao lado da casa grande, ainda aguardavam o final da ordenha para mamarem, cocás, patos, gansos, perus e galinhas, enquando aguardavam a chegada do milho comiam junto com os porcos, os pintinhos ao redor das galinhas esperavam o resultado de forte ciscar da mãe e faziam a festa; de vez em quando um mais afoito levava uma forte bicada da galinha que descobria ser ele um intruso, e corria piando em busca da própria mãe. O Tiro ali não apareceu, na certa aproveitava que o galo estava faminto esperando o milho, para correr atrás das galinhas, na frente da casa.

Coreia, a montaria do pai da menina, já estava pronta para levá-lo à cidade, o tropeiro acabara de desaparecer na colina ao longe com vários animais carregados com cacau seco e outros com caçuás levando...

- GALINHAS!!!!!!

A menina sempre tão tranquila correu ao encontro da mãe que já descia a escada com uma bacia de milho que sacolejava enquando gritava: bruuu...ti...ti...ti...ti...choc...choc...choc...choc... Ao ver o choro desesperado da filha jogou todo o milho de uma só vez no terreiro e subiu a escada com ela pela mão. Entrou na sala de jantar onde o esposo tomava o café com carne frita e aipim cozido, para em seguida encetar viagem de quase uma hora rumo a Itajuipe. Ao ouvirem a algazarra seus irmãos irromperam sala a dentro, todos falando ao mesmo tempo.

Que aconteceu, minha filha? - indagou a mãe! – Será que foi picada por uma cobra? Ou uma aranha caranguejeira, daquelas que ficam junto com as bananas jogou pelo nela!

- O tropeiro levou Tiro – balbuciou.

- Quem atirou no tropeiro? – indagou um irmão.

- Pai, alguém anda armado aqui na fazenda! – deduziu uma irmã.

- Mas... O tropeiro saiu há pouco com os animais para a cidade! – falou o pai.

- Pessoal, ela fala do Tiro, aquele frango galalau que foi cuidado por ela aqui dentro de casa – voltando-se para o marido – quem pegou as galinhas no poleiro, esta madrugada, para a festa de São Cosme e Damião do patrão?

O pai da menina baixou a cabeça, pesaroso.

A menina abriu o berreiro.

- Filha, lá na cidade vou comprar um brinquedo para você. Olha, aquele frango assim como todos os outros que foram levados, não poderia ficar aqui no terreiro, pois o galo estaria sempre o perseguindo. Um dia ao fugir da perseguição ele poderia atravessar a cerca e ao entrar no mato ser comido por uma raposa. Não fossem os cachorros e elas viriam pegar as galinhas aqui no poleiro... Diga-me que brinquedo quer e eu o comprarei para você.

A menina pensou: nenhum brinquedo me faria esquecer o Tiro.

- Pede uma boneca, disse o irmão caçula.

- Um boneco! Quero um boneco de celuloide! – Lembrando-se do boneco de Leda, a filha da sua madrinha a menina rociocinou: fico sem o Tiro, mas terei um boneco de celuloide, melhor seria ficar com os dois, mas... – Conseguiu ficar menos triste, a noitinha o pai estaria de volta. Foi o dia mais longo da sua vida .

Acordou na manhã seguinte e pulou da cama. Que pena, não resistira ao sono e não vira seu pai chegar. Correu para a sala de jantar onde sobre a mesa deveria estar o seu boneco – era o lugar onde sempre eram colocados os embrulhos trazidos da cidade. Sobre a mesa um pequeno pacote. Onde teriam colocado seu boneco? Será que uma das suas irmãs o levou para o quarto? Voltou lá e começou a puxar cobertores, sacudindo as irmãs e indagando: Cadê o meu boneco, onde foi colocado? Assustadas e preguiçosas elas a olharam com doçura e a mais nova saltou da cama. – Ajudo-te a procurá-lo, deve estar sobre a mesa, vamos! – Saiu em disparada rumo à sala de jantar, pegou e abriu o pequeno embrulho sem o cuidado habitual que todas tinham de tirar o papel com carinho para não rasgá-lo, pois papel bonito na fazenda só quando recebiam presentes.

- Eis, minha irmã, seu boneco de celuloide! - Que bonito exclamou beijando o pequeno boneco.

- Não é igual ao de Leda, decepcionou-se a menina.

- Acho que o papai não tinha dinheiro para comprar um grande, mas este é tão lindo quanto o da Leda e faz de conta que ele acaba de nascer...

A menina, disfarçadamente enxugou uma lágrima, engoliu em seco e recebendo das mãos da irmã aquele boneco o apertou ao peito e começou a amá-lo.

No domingo seguinte com biscoitos e laranjada foi realizado o batizado do bonequinho que recebeu o nome de Jarinho. E Jarinho tomou banho no rio, passeou pelas fazendas vizinhas, foi à escola, subiu nas goiabeiras, pulou fogueiras de São João, se enterneceu com o gorjeio dos passarinhos, colheu flores de malmequer. A menina cresceu, Jarinho testemunhou seus primeiros versos aos treze anos...

Dez anos depois, finalmente o milagre!

A menina, agora uma jovem mulher, na maternidade do Hospital Santa Cruz recebia nos braços uma linda boneca enviada por Deus; corada e rechonchuda tinha braços e pernas cheios de dobrinhas, a cabeça redondinha quase sem cabelos. Não era de celuloide, mas de material mais nobre. Tinha um coração pulsando no peito. E o bebê chorava, e a “menina” sorria...

Eglê S Machado