Personagens reais de minha infância e pré-adolescência
Durante toda a nossa existência vivemos e convivemos com pessoas cujas imagens carregamos em nossa memória por longo tempo e, às vezes, por toda a nossa vida. A família geralmente entra na categoria da presença diária e permanente. Há pessoas, as quais chamarei de personagens de minha infância e pré-adolescência, participantes na construção de uma história cotidiana de vida, que ainda faz parte das rememorações do meu imaginário pessoal.
São figuras que, segundo Edward Palmer Thompson, fazem parte da corrente de historiadores comprometida com a “História vista de baixo”, que se empenha em abordar pessoas comuns ou menos favorecidas da sociedade para revelar maior riqueza das relações sociais.
Não sou historiador e muito menos sociólogo, a intenção aqui é, como já foi esclarecido, relembrar um pouco os personagens que fizeram parte de minha infância e pré-adolescência. Meu depoimento perante a História, seguindo os caminhos de Thompson. São eles: o padeiro, o leiteiro, o aguadeiro, e as duas primeiras paixões, a professora do segundo ano primário e uma contemporânea de colégio, que estudava no terceiro ano ginasial, cuja diferença de idade ia além dos sete anos; entre mim e da dona Creusa passava de vinte anos.
Guardo nítida na memória a presença do entregador de pão. Todos os dias ele fazia essa entrega, mas só o víamos nos sábados. Nos dias úteis ele passava muito cedo, as crianças dormiam e quem recebia o pão que nos alimentava matinalmente era o nosso pai, já acordado e se preparando para a labuta diária.
O padeiro, era assim como o conhecíamos, era homem de baixa estatura, muito forte, tão forte que era capaz de carregar no ombro um cesto de vime bastante grande, que comportava centenas de pães sovados e comuns. O pão sovado, também conhecido como pão de Provence, recebeu este nome porque a massa precisa ser muito sovada para adquirir sua textura característica. Pão de origem francesa, mais especificamente da região da Provença, daí seu nome. Também é conhecido em alguns lugares do Brasil como "pão Tatu", devido ao seu formato se assemelhar a este animal.
Já o pão comum ou francês, o preferido lá de casa, hoje também conhecido como bengala, bisnaga, baguette, pão de sal, e quando pequeno, carioquinha, careca, bisnaguinha, cacete, era o mais frequente no cestão do padeiro. Sua chegada, a partir das quatro horas da tarde, era esperada por muitos dos consumidores da deliciosa massa. Meu pai, sentado em uma cadeira de balanço de vime e nós, ao seu redor. O primeiro que avistava o padeiro gritava com alegria – lá vem o padeiro! A espera era angustiante, pois ele parava em cada uma das casas de seus fregueses, conversava muito e recebia o dinheiro da entrega da semana. Também em algumas dessas casas havia crianças a sua espera. Às vezes ainda tinha que passar troco, aumentando a nossa angústia. Por fim, alguém falava: - só falta a casa do seu Furtado, nosso vizinho e muito amigo de meu pai. Lá não havia criança para atrapalhar e o seu Furtado era de pouca conversa, sempre pagava o pão com dinheiro trocado, principalmente moedas, pois o consumo de pão de sua família não era muito. Estava sempre longe do nosso consumo semanal: pai, mãe, oito filhos e a empregada Maria, demasiada comedora de pão.
Eis finalmente o padeiro em nossa porta. O curioso é que, se não me falha a memória, ninguém lhe sabia o nome, acho que nem mesmo o nosso pai. Mas isso não era importante, padeiro já bastava para a nossa relação de amizade sabática. Nosso pai era quem dizia quantos e quais tipos de pães eram necessários para aquele dia e para o domingo, o homem descansava neste dia, pois ninguém é de ferro. Nossa expectativa aumentava, o padeiro embrulhava os pães indicados, passava para as mãos de nosso pai, que entregava para a nossa mãe levar para dentro de casa. Havia ainda o pagamento para fazer, o troco para passar e a conversa fiada entre os dois. Quando tudo isso havia passado, o padeiro retirava de seu cestão um pão comum, entregava a um de nós, o mais atento a todo aquele teatro real, era o brinde, que nosso pai deixava por nossa conta a sua divisão. Este ato representava sempre início de confusão, todos queriam o bico do pão. Como havia somente dois bicos e oito filhos, e não havia prioridade de idade, o jeito era tirar “par ou ímpar”. Os dois últimos ficavam com os bicos dos pães. O restante do pão era repartido entre os demais. Era uma refrega saudável e divertida. Depois de tudo isso, entrávamos para jantar.
Quando eu era criança não havia o leite pasteurizado, processo proposto por Franz von Soxhlet, no final do século XIX, que destrói as bactérias existentes neste produto, prolongando sua qualidade para uso, tampouco as embalagens “longa vida”, que pela sua condição de assepsia permite melhor e mais durável conservação dos alimentos.
A pasteurização do leite no Brasil teve início na década de 20 do século XX, mesmo assim, em Fortaleza, até a década de 50-60 do mesmo século, o leite era ainda entregue de porta em porta, transportado em baldes de alumínio, trazidos pelas carrocinhas puxadas a cavalos ou outro meio de transporte mais rudimentar. Em nossa casa este produto era entregue por um leiteiro, homem geralmente sem noção nenhuma de higiene, que montava um burro carregando dois caçuás, cesto grande e comprido de vime, cipó ou bambu, sem tampa e com alças para prender às cangalhas usadas no transporte de gêneros diversos em animais de carga. Nesses caçuás, o leiteiro acomodava quatro baldes de alumínio ou latão, com capacidade para 20 litros de leite cada. Ele percorria sua freguesia logo de manhã cedo, a entregar a quantidade de leite necessária para cada casa.
Também só o víamos aos sábados, quando ele chegava mais tarde e todos nós já de pé - não era dia de aula -, a esperá-lo. Não havia confusão na hora de entrega do leite, pois ele, o leiteiro, dava o agrado às crianças antes de atender às suas freguesas. Este agrado se traduzia na colocação de um pouco, pouco mesmo, de leite em cada caneca de criança que estivesse o esperando. Era apenas um agrado, uma satisfação pela fidelidade da freguesa. Talvez o quinhão de água colocada no leite por ele.
Lá em casa eram três litros diários e seis no sábado. Os filhos eram muitos e nossa mãe gostava de alimentá-los com bastante leite e produtos feitos a partir dele, como bolo, canjica, arroz-doce, manjar etc. Tinha o cuidado de coar o leite com um pano branco e limpo, para reter as impurezas nele contidas, antes de fervê-lo. Só não havia a preocupação de verificar que o leiteiro, ao retirar o leite do balde com uma caneca, também de alumínio, molhava quase todos os dedos da mão no leite. E sua mão não era lá muito higiênica, pois com ela, ele recebia o dinheiro e passava o troco. Também açoitava o pobre do animal com o seu sujo chicote. Naquele tempo a higiene não era coisa de primeira necessidade, pois nem mesmo contávamos com rede de esgoto, tínhamos fossa para o material fecal dos moradores e as águas servidas corriam soltas pelas valas das calçadas.
Outro personagem que povoa minha memória de infância e pré-adolescência é o senhor Alemão, o aguadeiro, o entregador de água. Diferentemente de outros tempos, a água hoje entregue em nossas casas tem origem em fontes conhecidas e é envasada em garrafões de plástico, sem o contato do ser humano. Naquela época, pelo menos em Fortaleza, em nossa rua, ela era entregue em corote, pequeno barril de madeira de lei, capacidade 20 litros, sempre transportada por dois jegues, jumentos, cada um trazendo quatro desses corotes. Antes de seu uso, ela era coada e guardada em um pote de barro, com capacidade para mais de trinta litros, e coberta com pano branco, para evitar a entrada de insetos e outros animaizinhos.
Nessa entrega não havia festa, mas me intrigava o seu Alemão, homem rude, forte, aparentando meia idade, como se dizia naquela época, de pele muito vermelha, pouco pela genética e outro pouco pelo sol, daí o seu nome. Não sabíamos se ele realmente tinha descendência dos germânicos, seus cabelos quase brancos de tão dourados e queimados pelo sol escaldante de Fortaleza causavam essa dúvida, nunca esclarecida por ele. Talvez um fugitivo da Alemanha durante a segunda guerra mundial. Um nazista? Uma hipótese, já que o homem era por demais reservado, falava apenas o necessário e nunca deu seu endereço para ninguém.
Outra questão que nunca ficou clara era a origem da água. Para ele a água vinha do Açude Acarape do Meio, localizado no município de Redenção, distante de Fortaleza 55 km, construído entre os anos de 1909 e 1924, com o objetivo de abastecimento de água potável à cidade de Fortaleza. Era difícil de acreditar, pela distância. O certo é que não se tratava de água potável, daí a necessidade de fervê-la antes de seu uso.
Falar das primeiras paixões de pré-adolescente agora é muito fácil, o que pode me trair é a memória, pois já se passaram alguns anos. Dona Creusa, a professora Creusa – não era costume chamá-la de tia – quantos coraçõezinhos não perturbava. Ficávamos quietos esperando sua entrada em sala de aula. Todos se levantavam, em respeito à professora, os meninos, em respeito àquela que era a professora mais bonita do colégio. Hoje, gostosa! O adolescente percebe isso facilmente. Pele e cabelos bem tratados. Usava sempre vestido justo e colorido, que conformava seu corpo esculturalmente. Uma deusa, travestida de professora. Também aguçava o nosso imaginário comparando-a às mulheres habitantes das casas de luz vermelha, localizadas na Praia de Iracema, posteriormente demolidas para o bem da moral e dos bons costumes.
Brigávamos para ocupar as primeiras cadeiras, embora as meninas sempre ocupassem a maioria delas, chegavam muito cedo à sala de aula. Quem fazia esforço para chegar primeiro, procurava sentar-se bem em frente da mesa da professora. Um sortudo! Durante toda a aula se percebia o ar de contemplação marcado nos rostos dos meninos, mesmo que estes procurassem disfarçar tal comportamento. Dona Creuza parecia se deliciar com a atitude e o interesse dos meninos por sua aula. Ela passeava por entre as filas de cadeiras com desenvoltura, parecia desfilar em passarela para misse, título bastante cobiçado pelas garotas daquela época, principalmente as que já haviam completado dezoito anos de idade. Um mundo maravilhoso e encantado era o prêmio. Mas nossa professora já alcançara os 28 anos de idade, impróprios para uma candidatura a misse. Minha musa jamais seria misse, e isso me deixava satisfeito, pois ela continuaria ensinando no colégio, eu passaria para os anos seguintes, mas ela estaria lá, para vê-la era só passar pela porta do segundo ano primário. Eu fiz isso várias vezes, até completar meus dezoito anos de idade.
No mesmo colégio, no mesmo período eu tive outra paixão. Cristina, pele cor de mel, cabelos idem, olhos verdes, tipo mignon, não tão formosa e bela como dona Creusa, porém, muito agradável e mais nova, disputadíssima pelos garotos de mais idade. Ela sabia disso e cultivava esse fetiche junto da garotada. Ela os usava em seu benefício; aos colegas pedia cola durante as provas e ajuda na elaboração de seus trabalhos escolares. A mim, que dela, procurava sempre estar próximo de ela, cabia conseguir manga verde para ela comer com sal durante o recreio. O sal vinha de casa e as mangas tiradas do mangueiral que ocupava a parte de trás do terreno do colégio. Lembro-me muito bem da satisfação que sentia quando ela agradecia, com sorriso largo e encantador, pela manga recebida. Era a recompensa pelo perigo que eu passava ao subir àquelas árvores altas e antigas, com seus galhos frágeis prestes a cair por um peso a mais.
Também tinha o bedel, o funcionário encarregado do comportamento dos alunos. Alguém nas mangueiras era levado prontamente para a diretoria, podia até ser uma suspensão de dois dias, caso este alguém fosse apanhado subindo às árvores. Eu nunca fui apanhado, graças a Deus.
Estes fragmentos de minha vida me fazem reviver com saudade os tempos idos de minha adolescência, da inocência daqueles tempos, do bucolismo de minha cidade, da vida natural que levávamos, sem malícia; puros, ingênuos, que o tempo, a ganância, a permissividade, a tolerância apagaram do comportamento do adolescente atual.