A reunião de família

Entre apreciar a beleza de um rio e querer nadar nele, existe uma diferença muito grande e Marisa sabia disso por experiência própria. O fato aconteceu há muito tempo atrás, mas não o suficiente para ser esquecido.

A sensação de um fundo lamacento e irregular engolindo seus pés ainda lhe provocava calafrios. Mantinha-se firme na sua promessa de jamais mergulhar em algo que sua visão, bem treinada, não pudesse enxergar.

Contentava-se em ver as pessoas se divertindo e não guardava ressentimentos por isso.

O céu azul prometia um belo dia e o sol já começava a se espalhar seu calor de forma convincente como que assinando embaixo.

A fumaça formada pelas tentativas de acender a churrasqueira atingiu-a em cheio, provocando lágrimas ardidas. Afastou-se esfregando os olhos como uma fugitiva do inferno e encontrou um canto que por hora lhe parecia perfeito.

Tirou a blusa e ajustou a parte de cima do biquíni deixando que a pele branca, que muitas vezes se confundia com as paredes do escritório, ficasse exposta e afastou os chinelos.

Depois de perguntar-se pela milésima vez que diabos estava fazendo ali, rendeu-se ao óbvio, não tinha saída.

Aquele era o dia da reunião anual que pretendia promover a confraternização entre os membros de sua família. Faltar era simplesmente inaceitável a não ser que se estivesse preso a um leito de hospital ou se tivesse atendido ao apelo do divino espírito santo para repousar eternamente abaixo de sete palmos de terra.

Não por livre e espontânea vontade e sim, por muita pressão, encontravam-se ali desde que se entendia por gente e não foi só sua progressão na escala de crescimento que acompanhou; a dos primos também.

Isso era a vida, enquanto uns crescem outros encolhem. Notou de onde estava que a maior parte da família já se espalhava e quando avistou os pais correu para abraça-los. O pai, magro e de aspecto jovial parecia carregar nos lábios um sorriso sempre pronto a se expandir em qualquer direção e a mãe, estava elegante como se seu destino fosse um passeio de iate e não um churrasco familiar nas margens do rio. Uma figura! O vento podia se revoltar, mas nada, absolutamente nada parecia ter força para tirar sequer uma mecha daqueles cabelos do lugar.

Algumas tias, as boas, as más e as indefinidas já tinham garantido seus lugares próximo à churrasqueira e sob as árvores ,em busca de conforto e visão privilegiada dos jovens, que deixavam escapar coisas durante as conversas que seriam usadas como munição contra eles em uma futura discussão.

Respirou fundo sentindo a fome ser despertada pelo aroma de carne e examinou o visor do celular. Não havia mensagens, mas o sinal estava cheio. Nada mau.

Um burburinho percorreu a pequena multidão com a chegada da tia Neuza. Ela trazia alguns netos que logo saíram em disparada para a algazarra promovida pelas outras crianças e ignoraram de forma total seus chamados para que retornassem. Ao lado da tia, estava a mais nova aquisição da família, a nora recém-casada. Forçou a memória até lembrar-se do nome impresso no convite de casamento ao qual acabou não indo. Cássia, esse era o nome.

Carlos, seu primo vinha logo atrás da mãe e da esposa e após cumprir as formalidades de falar com um por um, pegou-a pela mão e jogou-a na água.

“Bem-vinda à família”, pensou ironicamente e ainda completou com uma pitadinha de maldade: “Mal sabe o que a espera, baby”.

Pensou na grande hipocrisia que era manter aqueles encontros. Já não bastava o natal e o ano novo? De qualquer ângulo era patente a divisão gritante demonstrada pelos grupos, pelas panelinhas.

Há muito tempo decidiu ser neutra em meio aquele campo minado de ralações desgastadas. Circulava em todos os grupos sem fazer parte de nenhum deles.

Sábia decisão que evitava problemas e mantinha intacta sua estabilidade emocional e dava um tom de normalidade à sua própria vida em meio à loucura que era pertencer àquela família.

Sua prima e melhor amiga Lilian é que tinha sorte, agarrou a primeira oportunidade e se mandou para o outro lado do mundo, usando a extensa distância geográfica como desculpa para se manter o mais longe possível.

Cachorrinha sortuda, xingou com carinho.

Sentia realmente a falta daquela danada com suas piadas e tiradas sarcásticas que a faziam rir e suportar com coragem aquela palhaçada.

Uma cerveja gelada foi colocada em suas mãos por tio Válter e antes que pudesse murmurar um agradecimento ele já tinha se afastado carregando, sem dificuldade, sua enorme barriga para perto das mulheres mais velhas. Deve ter dito algo realmente engraçado porque algumas delas se dobravam de tanto rir.

Sentiu o rubor subir como um foguete espalhando-se pelo pescoço e se instalando nas faces ao se perguntar se seria o alvo da piada, como nenhum olhar foi lançado em sua direção relaxou os ombros.

Sim, eles podiam ser bem malvados. Ela sabia.

Decidiu cair fora rapidinho antes que fosse pega para Cristo. Parava aqui e ali, conversando, recebendo atualizações e sonegando suas próprias informações, mas não conseguiu escapar do básico.

Sim, estava agora com vinte e oito anos. Sim, morava sozinha e não tinha namorado era o que dizia, embora não fosse totalmente verdade.

Era difícil para eles aceitarem o fato de que, ano após ano, ela não dava mostras de querer “amarrar o burro”, sossegar e se casar.

Seu olhar recaiu sobre Raquel que, muito mais nova, já tinha casado cumprindo seu papel e acrescentando à família mais três rebentos. Logo ela, que tinha um corpo que chamava a atenção onde estivesse e hoje mal conseguia se acomodar com dignidade dentro do enorme maiô, que não conseguia de forma alguma disfarçar os rolos de gordura que se penduravam em sua cintura como boias escandalosamente chamativas.

“Nem morta!”

Gostava da vida que levava, da sua liberdade e além do mais não tinha conhecido ninguém especial que mudasse suas perspectivas, colocasse borboletas no seu estômago ou que a deixasse completamente cega como só os terrivelmente apaixonados conseguem ser.

Tinha seus rolos que nunca duravam tempo suficiente para se tornarem algo sério. Realmente lavar cuecas e trocar fraldas não era seu ideal de futuro feliz. Pelo menos ainda não, talvez um dia, talvez nunca.

Ouviu seu nome ser sussurrado e pelo canto dos olhos viu que Igor estava lhe preparando alguma armadilha. Sacou o celular no mesmo momento que a chamavam. Apontou o telefone e fez química labial sussurrando TRABALHO.

Igor entendeu e voltou sua atenção ao grupo que jogava bola na água. Da última vez ele brincou de afoga-la. Incrível como uma pessoa podia crescer e suas atitudes não. Continuou a fingir falar ao telefone, não sem antes deixa-lo no modo vibratório. Vai que alguém resolvesse ligar e ele começasse a tocar denunciando sua farsa barata.

Recorria a esse truque com frequência. Tinha um trabalho que a escravizava e um celular, fornecido pela empresa, garantia que a escravidão continuasse em qualquer hora ou lugar. Por que não aproveitar?

Não reclamava, amava seu trabalho.

Mais gente começou a chegar, cadeiras, cobertores e mantas eram estendidos ao chão e logo um dos tios já dedilhava o violão. Sentou-se e ouviu a própria voz acompanhando as demais e começou a sentir-se a vontade em meio aos desafinados que provocavam risos em todos.

Igor se aproximou sorrateiro. Olhou desconfiada, recusou nova cerveja mais aceitou o espetinho que ele lhe ofereceu. Não parecia estar com más intenções.

Para sua surpresa estava se divertindo muito e quando percebeu que alguns já pareciam bem altos resolveu ir embora antes que os desentendimentos começassem, porque invariavelmente sempre tinha um arranca rabo nessas festas, sem chegar às vias de fato, mas no fim desgastantes.

Colocou a blusa enquanto procurava os chinelos em meio a um amontoado de outros chinelos, mas ao que constava ele estava passeando por aí em outros pés e não queria esperar.

Despediu-se de uns, acenou para os outros e abraçou bem forte aos pais ouvindo suas recomendações e prometendo visita-los logo.

Foi até o carro, abriu a porta e pegou as sapatilhas que mantinha lá as calçando de qualquer jeito.

Parou e observou por um tempo as pessoas que ainda se divertiam em um mar de traços conhecidos se misturando.

Não tinham nada a ver com ela, não tinham nada de perfeitas, mas eram sua família.

Não havia necessidade de estreitar laços, pois esses já estavam estabelecidos pelo sangue e nada podia desfazer ou mudar isso.

Sentiu-se bem ao perceber que não estava ali por obrigação e sim como compromisso.

Enquanto acenava pela última vez e pegava a pequena trilha de terra que levava à rodovia, sabia que ano que vem, querendo ou não estaria ali.

Sacudiu a cabeça e sorriu conformada, juntando em sua memória as melhores partes da festa para rir até o próximo ano.