MEMÓRIAS DE UM FIM DE TARDE
 
O sol saiu de detrás de uma nuvem e encheu a minha sala de luz. De repente me dei conta que ele faz isso todos os dias, mas nem todo dia tenho sol em minha sala porque há dias em que o céu está cheio de nuvens e não deixam passar a sua luz.
Sou homem de setenta anos sentado em frente á uma janela, nas últimas horas da tarde de um dia rigorosamente igual a todos os outros, mas também diferente de todos eles porque eu sei que cada dia é um novo dia e cada um tem a sua própria identidade porque é você que lhes dá nome e uma história.
Se você se sentar em frente á uma janela, ao cair da tarde e se dedicar a esquadrinhar suas memórias verá que os seus dias nunca foram sempre iguais. Comecar pelas mais antigas ou pelas mais recentes, não importa. O que fica é o exercício.

Minhas memórias mais antigas são de um barraco com paredes sustentadas por bambus amarrados com cordas, revestidas com barro seco e coberta com folhas de zinco.  O barraco ficava no fundo do quintal de uma professora aposentada.

Nós a chamávamos de “Dona Chiquita dos Cachorros.” O apelido tinha suas razões. Ela era uma velha senhora, sem filhos, que talvez por isso mesmo adotara como missão de vida recolher todos os vira-latas sujos e sarnentos que encontrava na rua.
Nenhuma mulher consegue escapar desse vínculo com a maternidade, ainda que finja estar imune a isso. Minha mãe, com quatro filhos pequenos, sem um pai para criá-los (meu pai estava internado em um hospital para hansenianos), era sempre a justificativa que a Dona Chiquita dava aos vizinhos para o fato de não ter querido ter filhos: “ ter esse monte de filhos para viver como essa aí?”, dizia ela, apontando o queixo para minha mãe. “Prefiro criar cachorros. São mais amorosos e agradecidos.”
Talvez pelo fato de essas primeiras recordações estarem associadas a cachorros de todos os tipos, latindo dia e noite nos meus ouvidos, tenho sonhos constantes com esses animais até hoje. Sonho com eles correndo atrás de mim, mordendo meus calcanhares, rasgando minha calça; de repente começo a distribuir pontapés para todos os lados. Minha mulher, que já levou muitos chutes, sabe que quando eu começo a espernear e dar coices dormindo, é por que estou sonhando com cachorros. E então ela me acorda, pois sabe do perigo que corre, e também eu próprio, que já levei oito pontos no lábio superior por ter um dia pulado da cama com tanta força e batido com com a na quina do criado mudo.
Minha mãe era empregada doméstica da Dona Chiquita. Cuidava dos cachorros e das tarefas de casa para a velha senhora. Tarefa ingrata aquela, de lavar os canis e alimentar aquela matilha furiosa que pulava em cima da cima da gente com aquelas patas sujas de tudo quanto era coisa.
E o fedor então. O canil ficava bem atrás do nosso barraco. Lembro-me que o telhado dele era feito de folhas de zinco, cheia de furos. Quando chovia minha abria uma sombrinha em cima da cabeceira da nossa cama para proteger a mim e meus irmãos das goteiras que fluíam, como se fosse um chuveiro, do teto do barraco. Não havia sombrinha que desse. A gente tomava banho sem querer, e esse eram os únicos banhos que tomávamos mesmo.
Comíamos as sobras da mesa da velha senhora e ás vezes só comíamos mesmo para não morrer de fome, pois a nós sempre parecia que aquela comida que ela nos dava era a sobra da comida que ela dava aos cachorros. Tinha gosto de comida de cachorro e cheiro de comida de cachorro. Mas era a única que tínhamos e graças a ela a gente sobreviveu.
Ah! sim, eu adorava frutas. Para mim a visão mais bela do mundo era a feira semanal, onde eu e meus irmãos mais velhos íamos para tentar ganhar algum troquinho carregando bolsas para as senhoras. Aquelas pencas de bananas amarelinhas, lindas laranjas baianas, peras carnudas e suculentas, pêssegos aveludados e macios, caquis-chocolate, melancias vermelhinhas, hummmm...
Toda vez que eu passava com minha mãe frente a uma quitanda, ou uma banca de frutas, eu pedia para ela comprar frutas para mim. Pedia primeiro com jeitinho, apontando as frutas que eu queria, depois com força, puxando-a para perto da banca, e quando a minha vontade não era feita eu começava a chorar e até a rolar na rua. Descobrira que ninguém suporta o espetáculo de uma criança chorando de fome, ou de vontade de comer alguma coisa. Geralmente aparecia alguma alma boa que acabava me comprando alguma fruta. Minha mãe odiava aquelas cenas que eu fazia. Ela, que geralmente não tinha dinheiro sequer para comprar uma única banana para mim, quando via que eu ia começar o espetáculo, pegava a minha mão e saia me arrastando pela rua afora, sufocando a imensa mágoa de não poder me fazer a vontade e escondendo o constrangimento de ter que suportar aquelas cenas tristes que eu proporcionava, sem ter outra opção para me oferecer além de arrastar-me para longe daquelas visões de tentação. Depois, quando eu já havia me acalmado ela me olhava com aqueles olhos úmidos, suspirava fundo e dizia: “ sossega, filho. Um dia você poder comer todas as frutas que quiser e muito mais.”

Meu irmão mais velho tinha doze anos e fizera um carrinho com rodas de uma velha bicicleta que o dono de um depósito de ferro-velho deu para ele. Com esse carrinho a gente transportava as compras das senhoras. Nós não sabíamos que já nessa época, éramos empresários do ramo de transportes.  E que minha mãe, era empresária do ramo de serviços, pois além do serviço que prestava á velha senhora Dona Chiquita dos Cachorros, também pegava roupa dos outros para lavar. Roupas que depois íamos entregar com o nosso velho e desconjuntado carrinho de mão.  E assim a gente ia crescendo e ganhando a vida.
 
Minha filha deixou meus netos comigo para ir fazer alguma coisa. Depois dos setenta anos a gente aprende a não perguntar para os filhos o que eles andam fazendo na vida. E eu gosto de ter as crianças comigo durante algum tempo. Não o dia inteiro, nem todo o dia. “Já criei os meus, agora criem os seus”, costumo dizer aos meus filhos. Mas me agrada muito tê-los comigo de vez em quando. A mais velha tem doze anos. Pega o seu Ipod e vai para a velha balança que eu fiz para a mãe dela há mais de trinta anos atrás. Só levanta os olhos do aparelhinho para fazer um carinho na cabeça da velho Ralf, meu cão pastor.  É a modernidade fazendo uma concessão á antiguidade. O do meio, com nove anos, brinca com um skate no cimentado do quintal. O mais novo, com seis, só larga o seu joguinho eletrônico quando sente fome.
“Vô, tô com fome”.
“Tem frutas, iogurte e bolo de cenoura que a sua vó fez, na geladeira. Pegue o que quiser”.
“Tem banana?”
“Tem. Na fruteira.”
Ela pega duas bananas e uma laranja e traz para eu descascar.
Eu pego a faca e começo a descascar a laranja bahia vermelhinha.
“ Que foi vô? Ce tá chorando?”
“ Não querido. Foi o sumo da laranja que espirrou no meu olho”, respondo tentando secar a lágrima com a manga da camisa.
Lembrança nova, lembrança antiga. Eu e meus irmãos. Éramos oito. Sete deles não existem mais. Nós trabalhávamos brincando, com aquele carrinho de mão. Meu neto come as frutas e depois, como se fosse a única coisa que vale a pena fazer no mundo, volta para o seu joguinho eletrônico, tentando descobrir, dentro de um labirinto, o caminho que o leva até uma arca de tesouro.
Pela janela ainda entra uma restia da luz do sol. Mas á medida que ele vai sumindo no horizonte, como um navio que desaparece na superfície curva do oceano, as sombras vão invadindo a minha sala. Daqui a pouco será noite e a roda da vida terá dado mais um giro. E tudo o que já foi será. Um dia também os meus netos se cansarão dessas brincadeiras e se sentarão em uma poltrona, em frente á janela para apreciar o fim de tarde. E recordar para continuar vivendo.