A MANHÃ FELIZ DE FRANCISCO
Francisco acordou e viu que o dia amanhecia diferente, mais claro. Era sábado, não tinha aula, não precisava acordar naquele breu em que nem mesmo os carinhos da mãe conseguiam afastar seus temores. No escuro ele sempre pensava no alçapão que ligava a garagem do pavimento térreo à sala, de onde costumava emergir altas horas da noite a paterna figura magra e miúda que decerto fora socorrer algum acidentado ou adoentado. Não era medo do pai, embora de vez em quando este lhe aplicasse corregedoras surras, assim como aos irmãos. Decerto todos as mereciam. O terror paralisante de Francisco era que por ali entrasse um ladrão, um bandido desses traiçoeiros como os que com mil artimanhas tentavam esfaquear ou balear o mocinho do cinema Imperial, o Roy Rogers. Ou que porventura entrasse um dos homens maus que entreouvia nas conversas da mãe, da avó e das vizinhas.
Agora os raios de sol penetravam pela janela às suas costas, expondo translucidamente sobre a cômoda o bibelô de louça do cachorrinho e os gibis do Roy Rogers, do Flash Gordon, do Cavaleiro Negro e do Bolinha. Estavam empilhados bem parelhinhos, quase tão arrumados quanto os livros do pai. O sol ia se assenhoreando cada vez mais do quarto. Banhava em cálido brilho as paredes amarelas, a madeira escura da cama patente, o cobertor quadriculado. Até mesmo aquecia Francisco gostosamente.
Sim, os olhos de Francisco se arregalaram pois de súbito tudo compreendera. Este não era aquele quentinho das outras manhãs, aquele quentinho que logo se desfaria quando a mãe o levantasse pelos braços, com carinho, e dissesse condoída:
- Vamos tirar essas roupas molhadas, meu amor? Ligeiro! Seus irmãos já estão tomando café. Tem sabatina hoje?
Então, nuzinho, ele tremelicava de frio. A mãe jogava as roupas no chão. Também derrubava os lençóis. O colchão, o cobertor e aquele tecido emborrachado marrom que ficava sob o lençol de baixo iriam para o sol. Ele nada falava, sentia falta daquele quentinho molhado. Deixava-se levar pela mãe, como uma marionete. A mãe passava-lhe uma esponja cheirosa e mais gelada que o frio do ar. Mas nessa hora é melhor que um banho, conjeturava o pequeno Francisco aos seus oito anos. A mãe puxava para lá e para cá seus braços magros, suas pernas finas, vestindo-lhe o uniforme escolar e colocando-lhe a japona de lã. Comeria pão com morcilha no café. Já sabia qual seria sua merenda: pão d’água com morcilha. Ele comeria a merenda escondido, com a cabeça enfiada na pasta escolar, envergonhado dos colegas que risonhos ostentavam belíssimos sanduíches de pão de forma, igualzinho às propagandas das revistas Seleções do Reader’s Digest que o pai assinava. Além da vergonha, carregava uma permanente dúvida: nunca soube com certeza se seus colegas sentiam-lhe o cheiro. Será que Alice sentia? Alice, aquela que sentava perto da mesa da professora e que tinha aqueles olhos tão doces que o faziam tremer de ingênua e infantil paixão.
Ainda subiria sonolento a lomba da Rua Benjamin Constant rumo ao grupo escolar com os irmãos. Ia piscando, pensando em voltar a dormir quando terminasse a aula. Sonho vão. Voltaria é querendo comer, querendo foliar. Não escaparia de umas chineladas ou cintadas se não se comportasse. E em hipótese alguma se safaria do banho, no final do dia.
Francisco, imobilizado pelo sol de sábado, quer aproveitar esta manhã. Suas mãozinhas percorrem o corpo, os lençóis. Está tudo sequinho! Instantaneamente salta da cama, procura seus chinelinhos. Tira cobertor, tira lençóis. Tira o emborrachado e dobra-o cuidadosamente, colocando-o ao lado dos gibis. Passa então a arrumar a cama, com gestos precisos. Primeiro, coloca o lençol de baixo, enfiando com firmeza suas extremidades sob o colchão. Depois põe o lençol de cima, cuidando para que fique simetricamente estendido sobre o outro. Dobra com igual esmero o cobertor e coloca-o aos pés da cama. Na cabeceira, ficará o travesseiro. Segura com a mão esquerda a cabeceira e olha demoradamente a cama bem arrumadinha, sequinha. Quer guardar esta linda imagem para sempre. Acaricia o lençol. Como o seu quarto está bonito! Até ele se sente maior, talvez até mais bonito. É como se um peso, uma dor ou a culpa de uma enorme travessura deixasse seu corpo para sempre.
Francisco não se contém. Corre para a cozinha onde a família reunida em torno da mesa entretém-se em conversas e risos. O pai não está ali, já foi trabalhar. Francisco achega-se à mãe, beija-a e sussurra: “Não vou mais fazer xixi no tijolo quente”. Ela o abraça e beija, comovida com a façanha do filho. Os outros ainda não entenderam o que aconteceu.
Fazer xixi no tijolo aquecido no fogão à lenha, à noitinha, era uma simpatia ensinada pela avó materna para curar crianças que faziam xixi na cama. Mas foram tantos tijolos quentes em tantos anos que Francisco já duvidava da eficácia da empreitada. A mãe pediu-lhe: “Agradeça à vó”. Ele beijou a avó, sentou-se à mesa, risonho, e pediu:
- Quero um sanduíche de morcilha.