O HERÓI E O TEMPO
 


O nariz sangrando não lhe permite relaxar, nem mesmo tentar fazer de conta que não está acontecendo. Porque está acontecendo. Tão certo quanto é maio de 71, ele e seu irmão estão mesmo apanhando de outros alunos.

- “Uma emboscada!” – Ele ainda romanceia o episódio, vendo nele as cenas que se repetem nas aventuras de caubóis e heróis, que tanto gosta de acompanhar na TV e nos quadrinhos.

Victor se ri por dentro, zombando de sua própria infantilidade. Mas não deveria.

No esforço que faz para se desvencilhar dos três meninos mais velhos que o estapeiam, não tem condições de notar que os pobres monstrinhos não distinguem fantasia de realidade. E querem causar dor.

Mas não dá pra exigir que alguém, aos oito anos de idade, com as narinas tingidas em vermelho-escuro e a adrenalina à toda, possa fazer uma análise dessas.

Seu irmão Hugo, mais robusto e mais velho que seus oponentes, tem mais sorte e se livra fácil. Curiosamente, entretanto, está mais confuso com a situação.

- Por que isso? – pensa.

Neste ponto, Victor leva vantagem: ele sabe o motivo.
Olhando para o suposto líder dos agressores, Joel, surge a lembrança de uma palavra. Uma palavra maldita: Patrulha!


O antes:
Patrulha, a brincadeira sem graça que um bando de meninos do terceiro ano decidiu praticar. Victor soube da nova mania bem antes que seu irmão. Há duas semanas, ele viu Joel e seus capangas amestrados correndo pelo pátio do Colégio Dom Bosco e gritando:

- Patrulhaaaaa!!!!

A princípio, achou que era só uma besteira inventada por aquele menino. Depois, conversando com seu amigo Dalton, ouviu uma explicação sinistra:

- Eles não prestam. Fica longe, pois o negócio é o seguinte: Eles te convidam pra brincar de patrulha. Se tu aceitas, tens que segui-los por todo o recreio. Se não aceitas, a patrulha te persegue! Quem diz não, vira inimigo...

Por três dias, Victor evitou ser abordado por Joel. Mas no quarto, não teve jeito:

- Quer brincar de patrulha?

Gaguejando, respondeu que sim. E teve que correr junto com a tropa de Joel. Envergonhado de seu medo, de mentir e de estar com alguém que Dalton dissera não prestar, ele se pôs no final do pelotão. De propósito, correu menos do que os outros, para ficar para trás e não ser notado.

Poucos perceberam sua participação na tropa. Mas o olhar de censura de Vilmar, amigo de seu irmão, não deixou dúvidas:

- Ele sabe...

Logo, o sinal bateu. O recreio chegou ao fim. Victor respirou, aliviado. Fim do constrangimento.

E nada mais ocorreria. Até o início desta tarde.

- Vamos brincar de patrulha? – perguntou Joel a Hugo, que negou balançando a cabeça para os lados e com olhar severo.

Encorajado pela resposta do irmão mais velho, Victor também recusou o convite. Aparentemente, nenhuma contrariedade foi percebida na face do “comandante Joel”. E as aulas se iniciaram, sem maiores problemas.

No recreio, entretanto, os dois decidiram ir até a capela, que fica no final do corredor das salas de aula.

O acesso ao salão de orações é separado por uma meia-parede, completada com tijolos vazados. A razão da demarcação, provavelmente, é determinar limite e respeito: além de missas pros alunos, aquele setor abriga o refeitório e os dormitórios dos padres.

Neste recreio, a divisória serviu para esconder os adversários: Joel e sua patrulha. E a cena começou.

Ambos foram facilmente surpreendidos, pois não seria de se esperar tanto atrevimento e falta de juízo. Puxar uma briga na entrada da área restrita!

O agora:
No nariz de Victor, surge o sangue. Na sua mente, os gibis e os seriados que tanto aprecia. Com uma imaginação sempre fervilhante, o garoto franzino não vive apenas o ataque de meninos sem noção. Ele é o Cavaleiro Negro, lidando com os malfeitores de Laredo, que tinham essa fixação por emboscadas em quase todas as histórias.

Mas o caubói dos quadrinhos pode usar força e pistolas. Victor não é lutador e nem tem armas. Então, quando a dor física começa, prefere lembrar de um mascarado com poderes que, sem lutar, sempre se esquiva dos socos e ainda imobiliza seus adversários. E, como o Columba, ele faz o que pode para imobilizar os braços de seus oponentes.

Não há tempo para saber se sua tática vai dar certo. A chegada do Padre Vitório acaba com a farra. Os meninos param o ataque, ouvem um pito e saem correndo.

Os dois emboscados falam do ocorrido e da tal patrulha para o religioso. Hugo muito sério. Victor, limpando o sangue do nariz, um pouco mais suave e até esboçando um sorriso.

A segunda parte das aulas começa e termina, mas Victor não está atento. Sua mente revive a cena, acrescentando drama e aventura ao enredo. A braçada desajeitada, que fez seu nariz sangrar, torna-se um murro preciso, desferido por um oponente vaidoso. O resmungo do Edu, um dos meninos capangas de Joel e autor acidental do feito, soa como um lamento de surpresa de um malfeitor, ao ver que o herói cercado não cai com o soco.

Caminhando de volta para casa, já na Alameda Bela Aliança, Victor olha para a própria sombra que se antecipa a ele no trajeto, como em todos os dias de sol, enquanto imagina uma saga na qual todos precisam agir para que suas sombras não se rebelem e fujam. Sem saber o que se passa na cabeça do irmão, Hugo, preocupado com o silêncio de palavras, pergunta:

- Está tudo bem?

Meio surpreso, Victor responde:

- Claro!

- E o teu nariz não tá doendo?


Só agora ele entende o que preocupa seu irmão mais velho. E aproveita para responder, com firmeza e orgulho:

- Eu? Não. Aquilo não foi nada. Nada mesmo! Viste a cara do Edu? Ele pensou que eu ia cair com aquele soquinho...

Hugo não entende a razão de metade das palavras de seu irmão. Nem do aparente entusiasmo.

Em casa, contam a desventura à família, na hora da janta. Victor ouve seu pai com muita atenção:

- Não fiquem com raiva dele; aquele menino não tem uma vida fácil desde que perdeu a mãe. E o pai dele, como delegado, não deve ter muito tempo para...

- Mas aqueles "piás" são maus! – diz Hugo, com firmeza.

Victor não sabe se concorda. Ele sente algum medo daquele bando. Mas Joel, pra ele, tem mais cara de personagem de história do que de malvado real. Súbito, aparece em seus pensamentos a cara sorridente do garoto. Dá-se conta de que é um sorriso bem estranho. Como se fosse de plástico.

As imagens e as ideias dão lugar ao som da voz do pai:

- Não é tão simples assim julgar alguém, Hugo. Mas os padres não deixarão que essa brincadeira aconteça outra vez.

O frio da noite outonal de Rio do Sul encerra o jantar, a conversa e o dia. Menos para Victor.

Distante do momento da adrenalina, seu corpo quer descansar. Mas a mente, não. Nela, a luta prossegue. E sua “tática Columba” dá resultado. Ele vence a agressão sem agredir.

O que fica para o menino, deste dia, é uma imagem de glória, por ter conseguido recusar o convite de Joel. Por não passar a vergonha de fazer outra vez algo que nunca quis. Algo feio.

Por ter enfrentado a emboscada. E, claro, por ter suportado bravamente o sangue correndo no nariz.


Antes mesmo de adormecer, Victor sonha com o futuro. Um, que tem as cores que enxerga em todo canto; até mesmo nas revistas e nos filmes em preto e branco que tanto adora. Ele se vê adulto, seguro, poderoso e benevolente, como o Columba. E tão brilhante em driblar tocaias como o Cavaleiro Negro. Aos vilões, dá o rosto de pessoas das quais não gosta.

Victor vai dormir com o sabor de um dia heroico.

Este é o futuro que ele escolhe ver.

Mas há outro futuro por vir, que ainda não pode ser notado.

Mesmo assim, virá. Cada fração de segundo, cada instante, transmuta o presente em passado. O amanhã está sempre vindo, jorrando nos espaços que deixamos. Antes de nos acharmos prontos pra ele.

Nos dias seguintes, os padres irão, de sala em sala, falar sobre brincadeiras violentas e extirpar a "temida patrulha" do imaginário das crianças. Ao menos dentro do colégio.

Em três anos, Victor deixará Rio do Sul.

Em seis anos, numa visita à cidade natal, ouvirá histórias sobre um investigador que, numa batida policial, encontrou o próprio filho na delinquência. O silêncio perguntará:

- Joel?

Lembrará as palavras de seu pai. Imaginará, de novo, um sorriso de plástico. A dor finalmente jorrará de seu nariz.

Em trinta e sete anos, verá o mundo combatendo o assédio e a discriminação nas escolas. Ouvirá um termo novo. E indagará:

- Foi isto que eu vivi? Um "bullying"?

Haverá uma alma que pode ter ido para as sombras por falta de oportunidade e atenção. E outra, que pode ter sido arranhada pelo fantasma do medo. Ambas passearão por sua cabeça.

Talvez, quando estes futuros chegarem, Victor titubeie aqui, se martirize ali, e refine sua inquietação acolá.

E talvez não. É possível que seus Cavaleiros Negros e Columbas lhe concedam uma herança tão forte, que ele receba cada choque do mundo como parte da história que o tornará quem ele acredita precisar ser.

Mas este é um veredito que cabe ao futuro; ou aos futuros.

Hoje à noite, nada disso está em discussão. Em sua cama, o menino faz uma descoberta junto com o primeiro bocejo: Se, como todo o herói que admira, ele também tem um ponto fraco, já sabe que não é o nariz.