SUSTO DA NOITE
Todos na casa haviam adormecido. O avô até roncava. Só mesmo numa noite de verão abafada como aquela o menino friorento e enfermiço teria coragem de realizar a peripécia naquele fim de mundo em que vivia. Calçou as sandálias e, pela porta dos fundos que os pais nunca chaveavam, adentrou a negra noite que parecia não ter fim. Não havia lua nem estrelas, só um céu tão escuro que ameaçava tingir até a alma do menino. Primeiro ele pôs uma mãozinha para fora, para sentir o hálito quente noturno e para temperar o medo.
Fechou com cuidado a porta. O ronco do avô era agora um leve sussurro dentro daquela casa que, vista de fora à noite, parecia maior. Ele colocou com cuidado a xícara na escadinha da porta e andou em volta da casa, tateando-a, contando e recontando seus passos espichados: quarenta e oito na parte da frente e noventa passos até o fundo. O tamanho era o mesmo da contagem diurna que costumava fazer por puro não ter o que fazer.
Sentiu um calafrio na canela. Temeu que fosse cobra, mas era só o pachorrento cachorro Tupi que o lambia em gratuita demonstração de afeto. Uma brisa soprou, arrepiou-o, sacudiu galhos de árvores e empurrou nuvens para trás do morro dos milharais.
Uma coruja piou, dando início àquela profusão de sons de animais que domina a noite. O bater de asas dos morcegos, o arranhar do telhado pelas galinhas d’angola, o nervoso trotear da égua solitária no potreiro, o choroso mugido do terneiro apartado da mãe, o cricrilar do grilo, o coaxar aguado dos sapos. Apertou o nariz com o fedor dos porcos e se deliciou com o cheiro dos eucaliptos que margeiam a estrada. Imaginou-se a beber um chá de eucalipto. Ouviu o acuar de cães distantes, talvez ocupados em cercar uma raposa. Tremelicou de novo: haveria leões ou leopardos ferozes como nos filmes do Tarzan? E lobisomem, existiria mesmo? Fez o sinal da cruz ensinado pela avó e apanhou de novo a xícara, equilibrando-a com cuidado. O leite ainda estava morno: aqueles filhotinhos da gata amarela não iam morrer, não. Que judiaria! O avô o mandara ensacar e jogar os gatinhos na sanga. E nem a mãe, de tão bom coração, se opusera àquela maldade. O menino saíra pela manhã, trocando perninhas mato afora em direção ao pontilhão, saco de aniagem às costas. Dera prumo ao caminhar, simulando obediência, mas, quando se pusera distante de casa, deitara os filhotinhos num chiqueiro abandonado e jurara alimentá-los. Jogara o saco vazio na sanga e voltara para casa num pisca-pisca encabulado pelo fingimento.
À noite os olhos estão firmes, arregalados. Os ouvidos, apurados. Ele tenta vislumbrar no breu a trilha da sanga e ouve débeis miados ao longe, mas neste exato instante o que toma por completo o seu ser são os ruídos que vêm do quarto dos pais. Parecem lamentos, gemidos sofridos, coisas de almas. O menino se assombra. Torna a entrar em casa, tira as sandálias, coloca a xícara de leite no chão e, guiando-se pelo lume fraquinho da grutinha da santinha que a avó montou no fim do corredor, arrasta os pés, peça por peça, até estacar junto à porta do quarto dos pais. Um gemido se repete, aumentando sua agonia e incompreensão. ”É a voz de mamãe!” Mas era um expressar tão sofrido e agourento, arrancado com aço do fundo do peito. Lembrava o canto do urutau. O menino empurra a porta com leveza e uma réstia de luz da santinha desvela um mundo fantasmagórico em que o teto e as paredes do quarto são cavalgados por sombras bruxuleantes de monstros engalfinhados em estranha e insana luta. Mais angustiado do que destemido, abre mais a porta e olha para a cama. A cena é chocante. O pai parece transformado, está sobre a mãe que ora o afasta ora o enlaça com os braços e as pernas, tal como uma serpente. “Estão nus, Deus do céu!”. O pai quer sufocar a mãe. Sucedem-se golpes, suspiros, lamentos. A briga termina. A mãe está imóvel, mostra-se vencida. O coração do menino bate acelerado. Sussurra com a mãozinha cobrindo a boca: “Deus, me ajude. Papai matou mamãe!”
Vê o pai saltar de cuecas para o chão com agilidade e pelos que ele desconhecia. A braguilha aberta e o brilho na careca suada aumentam o ar sinistro do pai, que passa a seu lado sem vê-lo e dirige-se para o banheiro. Somente agora o menino consegue se mexer, como se despertasse de um torpor. O terror o faz correr para a cama, cobrir-se totalmente com o cobertor e tapar os ouvidos, tentando fugir daquele terrível encantamento.
Passará a noite inteira acordado, em mudos e sinceros prantos e rezas. Fará o desjejum calado e ninguém saberá por que desmaiou ao ver a mãe aparecer na cozinha, bela e fagueira, e perguntar-lhe:
- Que cara é essa, Francisco? Parece até que viu um fantasma.