799-ESFORÇO DE GUERRA - Auto-biográfico.
Para melhor entendimento desta história,
recomendo a leitura de “Notícias da Guerra”,
Milistórias # 797, da qual é continuação
Tia Carolina (ou Madrinha, como eera chamada por todos os sobrinhos) ainda soluçava de saudade do irmão, Tio Armando, convocado para apresentar-se ao Regimento de Cavalaria de Três Corações, assim que o Brasil entrou na guerra contra o Eixo (Alemanha, Itália, Japão), quando, uma semana após aquele dia fatídico, eis que ele chega, de volta, risonho e brincalhão, como sempre.
— Fui dispensado por causa deste problema no tornozelo. — Dizia, e mostrava a cicatriz ainda recente, na forma de uma estrela.
Desta forma, os adultos ficaram aliviados, a alegria regressou à nossa casa e a guerra voltou a ser um acontecimento remoto.
Mas as dificuldades estavam apenas começando.
Devido ao afundamento de navios brasileiros, mercantis e de passageiros, completamente desarmados, no litoral da Bahia, atacados por submarinos alemães, o transporte de mercadorias entre o norte e o sul do Brasil foi fortemente reduzido. Sentimos da pele, ou melhor, no estomago, essa restrição.
Sal, açúcar e álcool, que vinha dos estados do nordeste e farinha de trigo, importada da argentina, encareceram rapidamente. Em seguida, veio a falta desses produtos no mercado.
A distribuição de sal, açúcar, farinha de trigo, álcool, querosene e gasolina foi regulamentada através do racionamento. As Cadernetas de Racionamento de sal, açúcar e farinha de trigo foram distribuídas às famílias. Cada família de até quatro pessoas recebia uma caderneta.
Em nossa casa morávamos sete pessoas (mamãe, papai, eu e Arthur: Tio Gordo, Tio Armando e Madrinha) e recebemos duas cadernetas.
As folhas eram constituídas de cupons destacáveis, retirados pelo comerciante autorizado a vender tais produtos, no ato da compra.
Para cada família, uma caderneta de cada produto, com direito a adquirir a cada quinze dias, um quilo de açúcar, meio quilo de sal e um quilo de farinha de trigo. As cadernetas de querosene destinavam-se aos moradores de sítios e fazendas, onde não havia luz elétrica.
As cadernetas de gasolina eram para os proprietários de automóveis e as de álcool eram para farmácias e médicos. Padarias tinham cotas especiais de farinha de trigo e hospitais recebiam álcool de forma diferente.
Farinha de trigo e sal não faltaram em nossa casa; mas o açúcar, usado principalmente para fazer o café, não era suficiente. Muitas vezes, nosso café foi adoçado com balas (caramelos) da loja de Tio Gordo, cujo estoque fora estrategicamente tirado da vitrina e levado para a cozinha.
Papai usava álcool em pequena quantidade para elaborar o verniz, com o qual dava acabamento aos móveis que fazia ou reformava. Não tinha direito a uma caderneta de álcool, mas como a cota de sal de uma caderneta era mais do que suficiente para nosso consumo, conseguiu trocar (não sei como, mas talvez tenha sido “dando um jeitinho”) uma caderneta de sal por uma de álcool.
A venda dos artigos racionados era feita por único estabelecimento em nossa cidade, autorizado pelo prefeito. Havia filas diariamente nas portas da Casa São Paulo e Minas (assim chamada por ficar em frente à estação da Estrada de Ferro São Paulo e Minas), de pessoas munidas de cadernetas de racionamento.
As compras de sal, açúcar e farinha em nossa família eram sempre feitas por um adulto — minha mãe, tia Carolina, Tio Armando ou papai. Fui com meu pai pela primeira vez comprar um litro de álcool. Eu tinha seis anos e era muito miúdo. Hoje seria classificado como subdesenvolvido. Papai perguntou ao homem que nos atendeu:
— Será que nas próximas vezes posso mandar meu filho –e me apontou com o dedo — comprar o álcool?
O homem me olhou com vagar e depois de pensar algum tempo, disse:
— Pode sim. Se ele trazer a cadernetinha e o dinheiro, pode ser, sim.
A partir de então, uma vez por mês, lá ia eu comprar o álcool para papai. Levava o litro vazio, que era trocado por outro, cheio, arrolhado e rotulado.
Ainda hoje não atino o porquê de levar e trazer o litro embrulhado em uma folha de papel jornal.
No dia marcado, ia eu, da Mocoquinha, onde morávamos, até o outro lado da cidade. Perninhas curtas e percurso alongado: quase dois quilômetros de andar a pé. O frasco de vidro seguro com as mãos, que era prá não cair.
E um dia, aconteceu o que não era para acontecer: o litro cheio escorregou das minhas mãos e estilhaçou-se na calçada de cimento, o liquido esparramando-se numa estrela no chão. Estava a apenas meio quarteirão de nossa casa.
Primeiro, o susto; depois, veio o choro. Pelo acontecido e pelo medo de contar ao meu pai o desastre.
Assim cheguei em casa: um soluçante menininho que não sabia nem explicar, entre os soluços, o que havia acontecido. Contei em primeiro lugar para mamãe, que, compreensiva e de certo condoída por meu choro, foi comigo à marcenaria de papai, que era no quintal de nossa casa.
A zanga de papai foi grande.
— E agora? Não posso entregar os móveis sem verniz. Agora, só daqui duas semanas posso comprar mais álcool. Vai atrasar na entrega dos móveis!
E sem entrega, não tem dinheiro, era o que ele queria dizer, mas não disse.
Não houve surra nem castigo. Como resultado prático, mamãe providenciou um embornal de pano que eu usava a tiracolo, com o litro de álcool transportado com segurança.
Assim, íamos enfrentando os difíceis tempos da guerra na Europa e no Pacífico.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 08 de Agosto de 2013
Conto # 799 da Série 1.OOO HISTÓRIAS