O APITO DO TREM
Ele ouve o apito do trem, vindo do oeste. São seis e vinte. Curioso ser assim, pontual. Com tantas coisas mudando tão rápido, como aqueles trilhos, tão antigos e deslocados, perdidos por entre bairros e avenidas de Curitiba, podem garantir pontualidade?
Mas o apito não erra nenhuma vez naquela manhã: o trem passa quando esperado.
Ernesto suspira, se indagando por que sua vida não é como aqueles trilhos. Afinal, sempre fica com a impressão de que tudo passa fora do momento em que deveria passar. Cedo demais. Tarde demais. Rápido demais. Devagar demais.
Sofia, por exemplo: cedo demais. Ele ainda não havia despertado para isso. Vivia mergulhado em seus livros. Ela, tão linda e sonhadora, até tentou chamar sua atenção; mas não era do tipo disposta a esperar. Meses, talvez. Quando muito.
Ele levou dois anos para cair em si. Pra ver que ela era mais que amiga; e que desejava mais dele. Devagar demais.
Tarde demais. Um sujeito com conversa impressionante e a cara do Bruce Willis já havia levado o coração e o sossego dela. Aos poucos, foram perdendo o contato. Ela não tinha mais tempo; e nem frequentava mais os mesmos lugares.
Muitos anos depois, ele a encontrou num supermercado, com uma menininha de quatro ou cinco anos. Cumprimentaram-se. Mas Ernesto não ousou perguntar. Apenas pensou: “Meu Deus! Ela continua linda! Será que a menina é do Bruce Willis de araque?”. E seguiu com as compras, engolindo a frustração. Rápido demais.
Seu trabalho? Só percebeu que poderia ser mais feliz fazendo outra coisa quando já estava ganhando o suficiente para não querer pensar num recomeço. Advogado; tendo como principal cliente um clube de investimentos. Tarde demais pra mudar.
Seis e trinta da manhã. Cedo demais para deixar a cabeça viajar tanto. Se mergulhar nas imagens, vozes e recriminações, o tempo sairá do controle. Outra vez. E logo, ao invés de cedo, ficará tarde. Precisará sair correndo para não atrasar compromissos.
O apito da locomotiva ressoa forte e estridente. O trem deve estar cruzando sua quadra por agora. É preciso concluir a barba.
Ao abotoar a camisa, de novo sua mente voa. O perfume faz o tempo parar e, depois, retroceder. Surgem os cheiros e os sabores de um dia de inverno, perdido nas névoas do passado. A colônia meio adocicada ilude as narinas sonhadoras; e logo surgem barulhos de xícaras, cutucando pires e colheres. A inconfundível presença aromática de sonhos enormes e macios, cobertos de açúcar, e o emaranhado difuso de vozes confirmam: ele volta aos cinco anos e está naquela estação ferroviária de Jaraguá do Sul, ainda no século passado.
Em idade tão tenra, seus problemas eram outros. Naquele dia curioso, era um só: o anel perdido. De ouro, dado por sua madrinha, que caíra na plataforma da estação. Seu lamento tinha sido tão comovente, que metade dos transeuntes se agachara para procurá-lo.
De um jeito espantoso e inesperado – ao menos para ele –, seu precioso anel acabara sendo encontrado por uma mulher. O sorriso e a voz vieram do alto. Ele precisou esticar os braços bem alto, para recuperar o objeto dourado. A alegria e o alívio quase lhe fizeram esquecer aquele tímido e encantador "obrigado" que as crianças conseguem proferir nessas horas, geralmente estimuladas pelos pais.
Pensar em cenas marcantes da infância ficou mais confuso, graças às velhas aulas do professor Horácio:
- A memória é uma louca que vive num sótão e tem um baú cheio de roupas coloridas. Sempre que ela desce pra se apresentar na sala, usa uma combinação diferente. Como saber se o que vemos nas nossas lembranças é uma imagem fiel do passado?
Ernesto se preocupa com isto só às vezes. Gosta, no fundo, de ver essa mulher “heroica” da estação como seu ideal de beleza feminina: cabelos negros e longos, olhos escuros, sorriso amplo. A mulher que procura até hoje. Sua musa particular. Quimera não tão fugaz...
Girar a chave na porta o traz para o presente de novo, num supetão. O retorno é tão brusco que quase o deixa tonto. Quase.
Ele recrimina a si mesmo: tantos pensamentos! O tempo não espera, nem volta. Quem espera é o cliente com o qual marcou uma assessoria - e que pode não voltar, caso ele atrase. Seis e cinquenta.
Quando o elevador se abre, sua vizinha Aurora sai dele. Os dois se cumprimentam. Ao fecharem-se as portas, o homem das leis se imagina focado e dono de sua racionalidade outra vez. A descida o faz olhar para o presente. Em poucos segundos, está na garagem.
Entra no carro e liga o motor. Segue para seus compromissos pela Avenida Paraná, rumo ao Tarumã, onde montou seu escritório.
Ao cruzar os trilhos, consegue ainda ver, ao longe o final do comboio de vagões. “Este trem veio carregado; está bem longo”, diz pra si mesmo.
Manobra seu carro para cruzar pelo Bacacheri e chegar à Avenida Nossa Senhora da Luz, com acesso menos tumultuado ao seu destino. A tranquilidade do trânsito, naquele instante, o permite avistar o bar em que havia conversado pela primeira vez com Naya. Jovem, inteligente, muito falante, criativa. E cheirosa. Ah! Como estava cheirosa! Com seus olhos brilhantes e a voz macia, envoltos por aquele perfume...
É claro que muitas fantasias passaram por sua cabeça. Ela sorria de uma forma doce e ambígua. Ou seria sua imaginação? Mas em suas intermináveis cautelas, perguntas internas e senões, Ernesto deixara o momento passar sem dizer nada, sem assumir nada. E provavelmente, pensa, nunca saberá se aquele olhar teria sido “você compreende o que eu estou falando?” ou “quando você vai se tocar e me dar um beijo?”.
E lá vêm suas frases: “Tarde demais”, porque se preocupou “cedo demais” e reagiu “lento demais”.
- A história de minha vida em quatro ou cinco frases!
Uma brecada ruidosa o traz de volta ao Planeta Terra. Trânsito interrompido. Obras.
Há um desvio logo adiante. Terá que descer e contornar pelo Cristo Rei. São sete e trinta.
Três manobras depois e a verdade inclemente da vida real cotidiana se apresenta: engarrafamento.
Nada mais de pensamentos etéreos, fantasias, suspiros com um passado idealizado e fugidio. Sem autopunições pelas escolhas que deixou de fazer. Sem idealizações de fêmeas primaveris e míticas. Apenas buzinaço, gás carbônico, poeira e o ligeiro sintoma de que pode começar uma azia. Sete e quarenta e cinco.
A primeira expressão heterodoxa surge em seus lábios:
- Que merda!
Busca no rádio e no CD algo que revigore o humor. Transeuntes passam comentando um acidente, principal motivo da fila parada.
Um acidente. Sua imaginação vai “para o lado sombrio da Força” e pensa numa carreta quebrada e deitada na pista. Será uma espera e tanto.
E o seu cliente?
O sujeito que o contatara pareceu-lhe impaciente. Daqueles que padecem da “Síndrome de Wall Street”: acha-se a última bolacha do pacote, presume que sorrir muito é sinal de fraqueza e não tolera qualquer descumprimento do que tiver sido combinado. Oito horas.
Olha para o celular, na esperança de que o Sr. Wall Street também esteja preso em algum acidente e escreva, remarcando seu encontro. Nada. Nenhum sinal. Nenhum sinal mesmo: é uma área de sombreamento e os celulares ficam inoperantes.
Nova expressão heterodoxa lhe vem, com força:
- Filho da puuuu......!
Não há mais como dar marcha-a-ré e buscar outra rota: a fila de trás já é tão grande quanto a da frente. Oito e vinte.
Um policial passa a pé por ele e o cumprimenta, dispondo-se a dar informações. Na conversa, é esclarecido que a pista demorará a ser desobstruída. O acidente envolveu veículos grandes e bloqueou o cruzamento do trem. Não há o que fazer. A rua e as paralelas estão barradas. Oito e trinta e cinco.
O trem! Aquele trem. Com o comboio interminável. Com os malditos vagões de carga que ele vira à distância. Tudo o que lhe sobrou, na provável próxima hora, é o ponto em que está do caminho.
Quase que simultâneo, ele olha para a sua esquerda com um pouco mais de atenção: há uma panificadora, com área para café e estacionamento próprio. Esteve ali o tempo todo; e é a primeira vez que a percebe. Não que este fosse um caminho recorrente, mas tampouco era desconhecido. E o advogado jamais reparara na cafeteria. Jamais.
Um estalo e a decisão é tomada: com jeitinho, paciência e pouca ortodoxia ao volante, ele manobra seu carro para o estacionamento da padaria. Oito e quarenta e cinco.
Entra, senta e pede um cappuccino.
Respira fundo, mergulha no aroma de sua bebida e tenta reiniciar o humor, como se tivesse começado o dia novamente. Não dá muito certo, mas ninguém poderá dizer que ele não é do tipo que tenta.
Um ligeiro tremor em seu bolso sugere que o sinal do celular deve ter voltado.
Mas antes que as mãos do advogado dediquem-se ao maldito teclado "touch screen", uma voz o faz virar a cabeça para o alto:
- Vocês tem café coado?
Ele olha, fixando no ponto de partida da voz, para ter certeza do que está vendo. É ela: Naya.
Por que está ali? Também ficou presa no trânsito? Mora por ali? Ou terá um caso com alguém da região?
- Ernesto?
Suas perguntas somem. Só a dela permanece. “Ernesto”! Ela se dirigiu a ele. A ele! Tinha sido descoberto naquele cenário matinal.
- Oi, Naya! Bom dia! Veio tomar um café e olhar a paisagem do trânsito?
Ela ri, mas não responde. Prefere outro assunto:
- Estás esperando alguém? Posso me sentar contigo?
Ele nem ousa falar, pra voz não sair dissonante ou se perceber gaguejando. Apenas acena a cabeça positivamente.
- Obrigada! Sabe, meu dia começou meio ruim. Chatinho, mesmo. Estou precisando que ele melhore.
Ernesto nem acredita no que está ouvindo.
Seu celular vibra de novo. É uma mensagem de Robert, o cliente. Seca e direta: JÁ SÃO NOVE HORAS. NÃO VOU ESPERAR MAIS! ONDE VOCÊ ESTÁ?.
Ele tem breves segundos para pensar no dinheiro que este negócio traria. E em quantos cenários do passado não se realizaram. Talvez ele pudesse teorizar sobre onde está a falta de sorte.
Nenhum pensamento se conclui. Naya está falando. E sua voz turva qualquer receio ou imaginação que Ernesto ainda poderia ter.
Antes que algo mude, que ele se arrependa ou se acanhe, escreve seis palavras e encerra a conversa com o Sr. Robert: NO PARAÍSO. TENHA UM BOM DIA.
Então, olha pra Naya. Sorri. E desliga o celular.
O tempo passa. Ou está parado.
Ao longe, o apito do trem ressoa de novo. Tudo indica que o caminho está livre agora.
Mas Ernesto já sabe disso.
Sabe, sim.