Entre Vidas
O céu estava desabando. As gotas grossas de chuva batiam no telhado, fazendo-o estremecer. Mas na casa, a sensação era de muito calor. O cheiro de madeira queimando impregnava o lugar, rodeava toda a sala e chegava a mim. Aspirei aquele perfume que me trazia lembranças tristes. Retornei à casa da fazenda, aos pastos verdes que brilhavam a luz do sol, a solidão do riacho, a tranquilidade da cabana. Aquele tempo em que meu sorriso era tão fácil, tão espontâneo. Quinze anos, apenas quinze anos. Fantasias a flor da pele, ilusões e certezas. Todas transformadas em cinzas. O vento abriu uma das janelas, me assustando. Levantei para fechar, mas a força do vento era tão imensa, que minhas mãos mal conseguiam se aproximar delas. Para piorar, a campainha começou a soar impertinentemente. – Mas isso é hora de vir a casa de alguém? – Intentei não abrir e esperar que, seja lá quem fosse, desistisse. Mas não aconteceu. Não consegui fechar a janela, que começou a fazer um barulho assustador. Resolvi me livrar do barulho da campainha, que era bem mais irritante.
-Já vai.- Gritei com raiva. Abri meio sem pensar, mal olhei o olho mágico. Estava mais preocupada em me livrar daquela visita indesejada, seja ela quem fosse. A porta deslizou e eu gelei. Apertei a maçaneta com toda a minha força, o calor da minha mão quase anulou a frieza do metal. Não tive reação, minhas pernas não queriam responder, uma palavra ficou perdida em meus lábios pálidos. Vi o mundo girar, lembranças vieram em grande velocidade, toda a minha história passou como um filme em minha frente. Já não conseguia ouvir mais nada, a janela já não tinha nenhuma importância. O vento não mais me causava frio. Tudo estava turvo, tudo se calara de repente...
PARTE II
Um som impertinente circulava em minha cabeça. Parecia um ruído. Não, não era um ruído, era um sussurro. Algo distante, como uma brisa gelada que arrepia os pelos do pescoço. Meus olhos não abriam, meu cérebro lutava contra a inconsciência, mas os olhos insistiam em se fechar. O som continuava, ficava cada vez mais claro, cada vez mais audível.
-Maria...- Ouvi meu nome. O som sumira e agora uma voz muito familiar pronunciava meu nome. –Maria, acorde!
-Huum- Gemi. Minhas ideias começavam a voltar para seus lugares.
-Graças a Deus!
-O que..? – Estaquei, aquele rosto, aquela voz, aqueles olhos. Eu os conhecia, claro que conhecia. Foram a razão da minha desgraça.
-Você desmaiou. Creio que se assustou ao me ver.
-O que você está fazendo no meu quarto, na minha casa? – Levantei de um pulo e, antes que minhas pernas falhassem novamente, respirei fundo.
-Acalme-se, não quero que desmaie de novo.
-Me responda, o que diabos está fazendo aqui!?
-Não creio que seja o melhor momento para te dá essa resposta, Maria. Você, obviamente, não está em condições de conversar. Eu vou embora.
-Você não vai a lugar algum.- Segurei o seu braço. Ele estava tão forte quanto eu me lembrava. Parou diante de mim e seus olhos verdes piscaram de leve. Eu conhecia aquele gesto. Ele estava com medo, estava nervoso. Se sentia acuado, parecia uma fera enjaulada. Estava se sentindo exatamente como eu me senti a anos atrás. –Se veio até aqui, só vai embora quando disser o porquê.
-Não tenho certeza...
-Juan Pablo, não seja bobo, todo mal que poderia me fazer, já me fez. Agora sente-se e diga o que o trouxe até aqui. – Fui tomada de uma tranquilidade. Eu precisava de paz, precisava estar ciente dos meus atos. Atacá-lo não seria a melhor escolha. Se ele estava ali, era melhor parar e pensar, antes de qualquer atitude brusca. Sentei e Juan fez o mesmo. Ele cruzou as mãos e suspirou. Por um momento, tive a impressão de que voltei ao passado. Me recordei imediatamente daquele rosto, agora bem mais jovem, me sorrindo da varanda da casa de fazenda. Eu corri ao seu encontro, mas tudo se desfez em névoa. O som da sua voz me despertou.
-Maria, eu...Eu realmente não sei por onde começar.
-Que tal com um pedido de desculpas?
-Como se isso fosse fazer alguma diferença.
-Para mim, faz toda.
-Não há pelo que me desculpar. Éramos jovens, você e eu. Se eu errei, você também errou.
-Vai mesmo me culpar? Não consigo acreditar na sua petulância, Juan.
-Você acha que foi a única a sofrer por causa disso? Eu fiquei arrasado, mas o que eu poderia fazer? Meus pais...eles...
-Eles sempre foram o seu problema! Você nunca teve coragem de sair da barra da saia da sua mãe. Ela mandou que você se casasse, e você se casou. Mandou que você fosse morar do outro lado do mundo, e você foi. Você nunca teve coragem de contrariá-la, Juan. Aliás, ela sabe que você está aqui? – Os olhos de Juan vacilaram. Meu sarcasmo o atingira como a ponta de um chicote.
-Não, não sabe...
-Foi o que pensei...
-Me ouça. Eu sei que você está magoada, mas se voltou para cá, é porque está buscando o mesmo que eu.
- E o que seria?
-Uma explicação! Eu tenho uma a dar e outra a receber.
-Não tenho nada para explicar. Você me abandonou sozinha, órfã e grávida. Eu tinha quinze anos, Juan, quinze anos! Mas sua mãe lhe disse para largar aquela camponesa inútil, porque ela só te traria problemas. E foi o que você fez, não foi? Você se casou com sua bela prima, foi morar na sua mansão na Itália. E eu, como fiquei? Desamparada, sem ninguém que cuidasse de mim ou do meu filho.
-Minha mãe me disse que você havia fugido com aquele homem! – Juan empalideceu. – O que queria que eu fizesse? Que fosse atrás de você?
- Do que você está falando?
- Do Fernando, daquele desgraçado que se dizia meu amigo. Você fugiu com ele, foi o que minha mãe me disse.
- E você acreditou...
-O que eu poderia fazer?
-Poderia ter ido atrás de mim.
-Eu fui, eu fui até a casa da sua tia, mas ela me disse que você tinha partido. Eu fiquei arrasado.
- Eu só fui embora com o Fernando porque eu vi...
-O que você viu?
-Eu vi você beijando a Ester, eu vi. Eu sai correndo, estava desesperada. O Fernando estava chegando e ...
-E você não pensou duas vezes antes de fugir com ele...
-Ele salvou a minha vida, eu poderia ter morrido se não fosse por ele. Ele prometeu que cuidaria de mim, prometeu que cuidaria do meu filho. Ele foi tudo que você se recusou a ser. – As lágrimas foram inevitáveis. Lembrar do Fernando me fazia doer o coração. Ele foi tudo de que precisei. Foi o pai que meu filho conheceu. Ele cuidou de mim e das minhas feridas. Infelizmente, eu o perdi. Ele se foi cedo demais, ele me deixou antes que eu pudesse me apaixonar por ele. – Respeite a memória do meu marido. Você não tem direito algum de falar essas coisas horríveis sobre ele. Afinal, você me abandonou. Ele estava do meu lado.
-Você não me deu a oportunidade de ver o nosso filho crescer. Você...você me roubou a chance de ... de ser seu marido. Não me peça para respeitar nada. Eu o odeio por ter te tirado de mim. – Senti que seus olhos estavam faiscantes. Estremeci. Juan estava se aproximando devagar, logo estava na minha frente. Senti que seus braços tocavam a minha cintura. Sua respiração estava muito perto da minha. Vacilei por um instante, mas aquela boca, aquelas mãos. Foi impossível não me entregar. Eu precisava ter certeza de que não amava mais aquele homem, eu necessitava disso.
-Juan...
-Não, Maria, não adianta resistir. – Foram suas últimas palavras antes de me beijar. E de eu me deixar ser beijada.
Continua...