A REUNIÃO*

A REUNIÃO Arrumava as cadeiras como fazia todos os dias. Por causa de um problema no metrô chegou uns dez minutos mais tarde, quase em cima do horário da reunião. André, o "dono do grupo", já estava sentado. Sem fazer porra nenhuma! Apenas fazendo seu monólogo sobre a responsabilidade do secretário, como que dando um favor ao lhe dedicar um pouco do seu tempo para encher o saco. Meu Deus, que vontade de mandar-lhe a merda!! E nem adianta explicar, de novo, que mora em Guaianazes, sai às 09:00hs para poder chegar aqui no Centro às 10:30hs e ter tempo de arrumar tudo, que faz isso de segunda à sexta há mais de quatro meses. Tinha fundado o grupo, o primeiro de Narcóticos Anônimos no Brasil nesse horário. E para piorar era daqueles que conseguira sucesso econômico na Irmandade. Tinha empresa, BMW, sempre uma namoradinha gostosa. Aceitação social não significa recuperação... Uma pinóia!! Essa parte do livro azul (livro base de NA) tinha que ser revista. Se fosse para escolher entre ser o queridinho dos companheiros vivendo sempre duro e ter a vida desse xarope, não pensaria duas vezes!

A verdade, que lutava para aceitar, é que a coisa toda já estava cansando. Acordar cedo, dar um "tapa" na casa da sua mãe, ficar duas horas na condução para vir para o grupo, arranjar um real para comer no Bom Prato, matar o tempo a tarde até a hora do estágio de auxiliar de enfermagem, sofrer dentro dos hospitais, aonde se sentia um peixe fora d'água. Ele que já fora aluno da melhor universidade do Brasil, professor sempre festejado, viajara pelo país inteiro fazendo política estudantil... E enfiara tudo isso no cachimbo! Bem, esse era o ponto. Em um momento de desespero queimou todos os navios que poderiam lhe levar à sua vida antiga. Colocou em não usar mais todas as suas fichas. Até o curso que fazia agora era porque tinha um posto garantido para quando terminasse. E na loucura daqueles dias um emprego técnico era a antítese dos sonhos que, de um jeito ou outro, o levaram aquela degradação...

Hoje tinha que se virar com a mesada que seu avô dava, suficiente só para a condução e o cigarro. Blanche DuBois, era em quem pensava nestas horas. Nada mais patético do que pretender ser oque não se é mais. Há uns três finais de semana assistia o DVD de Um Bonde Chamado Desejo na casa da sua mãe. Já nascia uma pequena dúvida se todo esse seu drama existencial não era uma desculpa para ver o Marlon Brando de camiseta agarradinha. Melhor nem pensar, bunda chata, gordinho. Até para dar ia ter que pagar. Mas começava quase à ser uma opção. Sua habilidade com as mulheres era abaixo de zero. Nem com as tão sempre dadivosas companheiras conseguia alguma coisa. Mas restava sempre a pergunta, não era mais as drogas, o que era agora?

Ainda faltavam 5 minutos para o começo da reunião e os primeiros companheiros começavam a chegar. Uma das coisas legais daquela sala era a sua localização e horário. A frequência variava muito. Tinha os que trabalhavam por perto e aproveitavam o almoço e tinham os que estavam começando e então estavam desempregados. Era até uma piada interna. O único grupo que ninguém ficava preocupado se o fulano desaparecia. Não tinha voltado a usar, tinha arrumado emprego! Havia os que trabalhavam à noite. Quando muito cansados sentavam nas últimas cadeiras para tirar uma sonequinha. Tinham os motoboys e os que trabalhavam na rua, que faziam um pequeno desvio. Em resumo, tinha de tudo e de todos os cantos da cidade. Diferente do "mala", os outros o ajudaram a preparar e tudo começou no horário. Apresentação, leitura de um folheto, depoimento de um companheiro com mais de dois anos limpo sobre o folheto, tudo como sempre, como todo santo dia. "Tédio, não tenho um programa. Tédio, esse é meu drama. Um dia eu fico sério e atiro nesse tédio!". Passou-se ao sorteio do direito de falar. Cada sorteado tinha sete minutos. A grande maioria dos grupos oferecia apenas 5 minutos, mas a maioria acabaria apelando para o grupo de samba mais ouvido da Irmandade: "Só Para Concluir!" Arrebentando o tempo para poder falar mais como a mãe ou o patrão não o entende...

O primeiro sorteado foi um adolescente de uma renca que de vez em quando aparecia. Trabalhavam todos com assinatura de revistas e davam golpe em cima de golpe. Não parava um de pé mais que dois meses. Gostava deles, já tinha feito até umas bagunças juntos. O esquema era a maior pilantragem, algo a ver com cartões de crédito, mas simples. E dava grana... É, mas o sonho acabava quando algum deles lhe chamava de tio. As coisas mudam rápido, ou o tempo passa depressa, sei lá. Vinte quatro anos, não era mais criança. Mais ao mesmo tempo não tinha esposa, não tinha filhos, não tinha profissão ou emprego. Que lhe impedia de se perder pelo mundo, aprontando tudo que desse na telha? A mente viajava enquanto o moleque relatava as aventuras de sua última viagem e os problemas com a mãe.

Mas os deles pelo menos eram originais. Boa parte dos relatos era uma eterna repetição dos clichês e das frases feitas da programação da irmandade. A cada dia percebia mais que era realmente uma "programação". Mais o firewall dos drogados era muito bom. Então a única forma de instala-la era martelando-a na cabeça.

Saiu de seu devaneios quando ela foi sorteada. Em verdade saiu de um para entrar em outro. Está certo, ela era linda. Mas não era esse o ponto... Quando ela partilhava ele simplesmente saia de si, vivia o mundo que ela contava. E, mesmo ela sendo mais inteligente que a média, não era isso. Talvez fosse a sua loucura e a intensidade que vivia tudo. Ou só o timbre de sua voz e como falava. Desta vez estava apaixonada por um companheiro HIV positivo que não parava em pé! Doida, doida, doida...

Mas até deste tipo de coisa estava ficando cheio. Há um mês atrás tinha se tornado próximo de outra maluca linda que, mesmo sendo universitária, tinha se apaixonado por um menor de rua, e estava tentando sair da enrascada. Tardes e tardes passaram conversando. Momentos maravilhosos... Para acabarem em um almoço em que viu ela se desmanchar por outro companheiro na sua frente. E ele com a sensação horrorosa de ter uma faca rasgando o peito. É... pelo menos foi o fulano que pagou o rango.

Será que seu dia chegaria? O dia que teria alguém? Que não dependeria de ninguém e poderia andar de cabeça erguida? Ouvia os relatos e ninguém lhe dava uma resposta.

Quer saber, chega!! Por um milagre tinha dez reais sobrando e nessa noite ia usar uma. Afinal de contas, quem iria saber?

Enquanto pensava nestas coisas foi sorteado um companheiro que ele nunca tinha visto no grupo antes. Começou seu relato pela felicidade de estar ali, depois de quase um ano. Tinha agora quatro anos limpo. Trabalhava, estudava, e estava começando à formar uma família. Estava de férias do trabalho, então podia visitar o grupo que tanto lhe ajudara no começo. E, com a maior simplicidade, contou como ficara mais de um ano vindo naquele grupo, todos os dias. De que, como seu ambiente de uso era próximo, ficava às vezes horas na Igreja da Sé antes de vir para cá. E como agradecia ter conseguido um tempinho para vir para esta reunião.

Toda raiva, tédio e amargura passaram. Todo o plano louco para a noite desapareceu. Só conseguia pensar em uma coisa:"Um dia eu estarei sentado naquela cadeira!! Dizendo às mesmas palavras!!"

Diogenes R Cardoso
Enviado por Diogenes R Cardoso em 02/05/2015
Reeditado em 13/07/2024
Código do texto: T5228224
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