Retrato Contemporâneo
 
     Doido ele não é, e nunca foi visto rasgando dinheiro. Talvez, perturbado por alguma entidade espírita. Pomba Gira, ou Zé Pelintra que se manifesta quando o possuído está embriagado.
     Sóbrio, anda devagar, cabeça baixa e cumprimenta apenas os amigos de farra. ---- E aí ladrão, vai beber? Hoje tem jogo.  ---- Que nada Doido, tô queimado com a mulé. ---- Ei, tu afinou, pegou cabresto?
     O apelido é Mosquito Doido, mas na intimidade fica reduzido. A conversa é aberta, por grosseria, ou ofensa à vizinhança. Os vizinhos acompanharam seu crescimento. Viram o sepultamento dos pais, o casamento e partida das irmãs. Ele ficou sozinho no casarão da família, um fantasma para assombrar a rua.
     Divide a existência em quatro atividades: dormir, comer, trabalhar e beber. Na bebida dedica a maior parte do tempo, Viaja vez ou outra, a trabalho, período de alívio e paz na comunidade. Diria no bairro, mas invadido por bares, restaurantes e quiosques móveis, pega bêbados que no início da noite se instalam até a manhã seguinte e outro vizinho de rua que lhe compartilha a fama, além da exibição de mais abastado da rua. Reconstruiu a casa em três andares e no último montou o salão de festa. O suíte possui até banheira de hidromassagem. Convidou a maioria dos vizinhos para conhecer. Realiza duas farras por semana, exceto quando seu time joga e ganha, que a festança perdura a semana com churrasco, fogos e som alto. Nos dias festivos recebe a companhia de amigos que chegam em carrões com vidros revestidos por películas bloqueadoras.
            Aos olhos da psicologia, a amizade entre os dois não seria possível, considerando a torcida por times de futebol rivais e o ditado popular que afirma não caber dois doidos na mesma porta, mas a bebida provou ser adesivo etílico nessa união.

     Constatei, outro dia, a firmeza da amizade numa conversa. ---- ei Doido, tu vem? ---- Vou miserável. O conteúdo desse curto diálogo é sinônimo de padecer para os moradores próximos. A jornada começa no terceiro andar do Miserável e vai terminar no dia seguinte na rua sob o comando de Mosquito Doido. A forma de tratamento, para eles, é representação do grau de intimidade.
            Lá por volta de duas da manha, o Doido coloca o carro na rampa da garagem, abre a mala e liga o som na potência máxima. Parece que bêbados além de mentirosos, são surdos. No caso desse, acrescente o mau gosto musical e o perfil ébrio.
            Seu jeito agora é outro. Corre trôpego uns cinquenta metros até o quiosque da esquina da rua em frente ao posto de combustível. É horário de efervescência. Mesas espalhadas pela calçada, rua e acesso às bombas, fechadas nessa hora. No braseiro a carne de bode assa. A fumaça e cheiro se espalham defumando aqueles espíritos mal amados. Mosquito Doido circula entre eles: aperta a mão de um, abraça outro que lhe elogia o som. Pouco se compreende o que fala na embriaguez e o tique nervoso. Abaixar e levantar a cabeça para cabecear uma bola imaginária. Frustração, talvez, do jogador de futebol que não pode ser.
            Por volta das cinco da manha, cansado de tantas vindas ao carro para renovar a música e sonolento pela bebedeira senta ao volante e entre os últimos goles e cochilos vai interrompendo a música que se inicia por outra que será também interrompida logo que se inicie.

Nota - Conto aula prática de oficina literária com o escritor pernambucano Paulo Caldas.