Pivete

Leilane caminhava por uma das ruas do bairro da Boa Vista chegando à outra artéria no vizinho bairro de Santo Amaro. Já avistara o muro branco do cemitério, trajeto perigoso, sobretudo para uma mulher àquela hora da manhã, mas não havia jeito a dar. Desfrutando do lugar calmo e arborizado, cheira-colas, trombadinhas e malandros em geral faziam daquele trecho o seu território. A bolsa explodia sob o braço direito enquanto ela apelava a todos os santos pra não ser percebida, afinal teria que passar por ali diariamente e faltavam apenas mais duas quadras para que chegasse ao seu destino, quando, de repente sentiu um toque no braço. Todo o seu corpo gelou. Há muito custo olhou para trás minimizando o terror que somente seu coração registrara num disparo de batidas descontroladas.

- Tia, me paga uma coca!

- Garoto, não tenho dinheiro aqui, mas vamos ali naquele bar onde tenho conta.

Inventou a estória na hora falando de uma só vez. Atravessaram a rua, entraram no bar, e ela, quase automaticamente mandou que o servissem solicitando ao surpreso atendente que pusesse na sua conta.

- Não quis abrir minha bolsa na rua e inventei ter conta aqui. Agora posso te pagar (falou num recanto com o garçom que desfazia a cara de pasmaceira). Enquanto retomava o seu caminho já temia antecipadamente por aquela nova rotina.

O muro do cemitério resplandecia intermitente entre as sombras das árvores anunciando o retorno ao calvário do reino da malandragem. Três deles atravessaram a rua em sua direção. (Dessa eu não escapo – pensou – quase optando por uma infrutífera corrida). Um bracinho esquálido se interpôs entre ela e os malas que já estavam à beira da calçada.

- Ela é minha amiga, deixa comigo aqui parceirada.

- Eles vinham lhe vendo esses dias. É bom a senhora se ligar que eu posso não tá por aqui toda vez, moça.

Porém, nos dias que se seguiram, “Pivete” sempre estava. Na semana seguinte, entre um lanche juntos no bar e uma ida até perto do trabalho e também no retorno até perto do prédio, ele sempre a acompanhava. Certo dia Leilane sentiu um cheiro mais intenso.

- Olha menino, hoje você vai subir e tomar um banho! Estás fedendo demais.

Não era um compromisso nem uma amizade. Parecia mais uma cumplicidade circunstancial. Passara-se alguns meses sem que essa rotina fosse alterada até certa noite quando Leilane fora tomar um sorvete nas vizinhanças de sua residência.

- Pivete? Que é que você tá fazendo aí? - O garoto, já há algum tempo deslocara para aquela região a sua frequência de andarilho mirim. Leilane percebera e chegou a pensar ter tido alguma influência na migração.

- Nada Tia – respondeu.

- Queres um sorvete?

- Comi umas coisa aí que uma veia me deu...

- Velha não! Uma “senhora” lhe deu.

- Tá, uma senhora...

- Quer sorvete?

- Quero.

- Qual sabor?

- Morango e coco.

Leilane voltou pra sua mesa, onde conversava animadamente com colegas de faculdade quando um barulho seco fez todos pararem. O tempo em que se recobrariam não permitiu reação. Quebrando o clima Leilane levantou da cadeira e foi até a esquina onde deixara Pivete tomando sorvete três minutos antes. Ele jazia deitado no asfalto da Rua Dom Bosco com o sorvete espalhado sobre um ombro e um fio de sangue sobre o outro.