776-O VELÓRIO DE LUQUINHA -
O VELÓRIO DE LUQUINHA
O celular tocou e atendi. A voz de dona Vitorina chegou, era só angústia.
— Dona Laura, pelo amor de Deus, vem me ajudar! Meu Luquinha morreu!
Era a manhã da segunda feira de carnaval e eu desejava passar todos os feriados no sitio.
Desejava...
Olhei para o relógio do celular: 10:20’
— Foi atropelado? —perguntei, à primeira ideia que ocorreu.
—Não, dona Laura. Foi ataque do coração. Morreu na folia, entre os amigos. Não sei o que fazer!
— Tá bom, dona Vitorina, já tou indo.
Um pedido de uma mãe angustiada com a morte do único filho, eu não podia deixar de atender. Vitorina fora empregada domestica e trabalhara a vida inteira para nossa família. Lucas tinha sido criado em casa de meus pais, era quase que nosso irmão. Não terminara o curso básico, faltava muito às aulas e nos últimos anos enturmara-se com outros jovens de sua idade, usuários de drogas — maconha, crack, sabe-se lá o que mais.
Cheguei a tempo de acompanhar dona Vitorina até o Instituto Médico Legal a fim de proceder a identificação do falecido.
— O corpo será levado para o velório no Cemitério Municipal na parte da tarde. — informou o funcionário do IML. — Lá pelas dezessete horas, o mais tardar.
O Cemitério de Aracilândia, pequena cidade que era como um bairro da capital, tinha uma única sala de velório abafada e mal cheirosa. Eu, meu marido Silas e dona Vitorina chegamos antes do corpo e ficamos conversando.
— Ele morreu no meio dos amigos. — A mãe explicava mais uma vez. — Estava brincado o carnaval, eram quatro da madrugada, Luquinha teve um ataque do coração, veio a ambulância, levou ele pro pronto-socorro, mas ele morreu no caminho.
— Ataque do coração? — Incrédulo, Silas queria detalhes. — Mas com apenas
dezesseis anos?
— É, o senhor sabe, as drogas...
Silas cochichou-me:
— Overdose, isso sim. —.
O corpo chegou. Chegaram também alguns parentes de Dona Vilma, moradores das redondezas. O enterro foi marcado para as sete da manhã seguinte.
—Vamos ter de passar a noite aqui. — falei com Silas, que concordou.
Depois das nove da noite, começaram aparecer os companheiros de Luquinha, amigos de droga e de farra. Chegavam aos bandos de cinco ou mais. Era evidente o despreparo dos rapazes (e algumas mocinhas) para o respeito ao morto e aos presentes.
Um deitou-se sobre o caixão, abraçou o corpo, chorou copiosamente, tirou uma pulseira de tecido e fitinhas do punho:
— Toma, Luquinha, leva com tu prá onde tu for. Vai te dar sorte.
Como o cadáver já estava hirto, duro, ele pegou a mão cruzada no peito, trouxe para cima, num gesto quase que obsceno, a fim de colocar a prenda no punho do morto.
Uma garota, talvez com quinze anos ou menos, tanto esfregou a mão e o rosto no rosto de Luquinha, que o arranjo floral foi se desfazendo. Um mulato alto, magro, de olhos vermelhos, tirou um anel de seu dedo e tentou colocá-lo no dedo de Luquinha. As mãos cruzadas sobre o peito, duras pelo rigor mortis, foram descruzadas e o dedo quase quebrado, no esforço do moreno em colocar o anel.
A movimentação dos jovens era tanta ao redor do caixão, que num momento Silas levantou-se e foi segurar a peça, com medo de que caísse ou fosse virada e tombada.
O cheiro dos corpos tornou o ar da sala irrespirável. Lá pelas tantas (talvez uma da madrugada) os jovens, tendo saído da sala e se reunido numa área defronte, começaram uma discussão. Altas vozes, gritos. Chegou até nós o cheiro da maconha, doce e envolvente.
Dona Vilma ficou aborrecida com o barulho, o desrespeito. Saiu do velório e dirigiu-se para o meio da moçada, sua voz sobrepondo-se às dos que estavam discutindo ou brigando.
Foi quando se ouviu um grito mais alto:
— Segura ele! Tá com um revolver!
Silas saiu correndo, gritando:
—Dona Vitorina, vem prá dentro.
Ela voltou com meu marido puxando-a pelo braço.
Ouvi um estampido.
Silas e um irmão de dona Vitorina fecharam a porta da sala do velório.
Eu disse para os poucos presentes:
— Gente, vamos rezar. — e puxei uma Ave-Maria, seguida do Padre-Nosso e Salve Rainha. E outras orações, respondidas por todos.
As coisas se acalmaram, não ouvimos mais nenhum barulho lá fora. Silas olhou por uma fresta da porta.
— A moçada foi embora.
Rezamos durante algum tempo. Depois, todos acalmados e sentados, foi um cochilo geral até o raiar do dia.
O que Silas não vira pela fresta da porta nos foi revelado quando saímos para tomar a aragem fresca da manhã.
Alguém disse, apontando para um arbusto:
— Olha ali embaixo. Tem um cara dormindo ali.
Fomos lá ver. O rapaz não estava dormindo, não.
De um pequeno orifício na testa escorria um filete vermelho.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 6 de março de 2013
Conto # 776 da Série 1OOO HISTÓRIAS