Trens, Putas e Prédios
Eu tinha catorze anos e morava em Ribeirão Pires, uma cidade pequena e arborizada, considerada pela maioria como interiorana (ainda que fizesse parte da conurbação como todas as demais cidades do entorno) e de fato, era um lugar tão (ou mais) parado e tedioso que uma cidade do interior. Não havia muito o que fazer além de ficar andando por aí e eu, montado em minha bicicleta, fazia exatamente isso: Me aventurava por diversas ruas e avenidas que me eram completamente desconhecidas, desobedecendo minha pobre mãe que sempre dizia para não ir muito longe e principalmente para não sair do bairro onde morávamos.
Porém, com o tempo, eu acabei por explorar todo o município e de certa forma, quando vagava, esperava apenas que pudesse encontrar algum conhecido ou presenciar algo diferente acontecendo, mas na maioria das vezes o que acontecia é que eu parava em algum lugar para ficar admirando as garotas que passavam para lá e para cá, ficava quieto apenas observando e assim perdia a esperança de que alguma mudança acontecesse. Acabava anestesiado por todo aquele marasmo, me reduzia a um rascunho humano, sem pensamento, sem sentimento, oco, vazio.
Além destes passeios de bicicleta, eu vez ou outra ia até as cidades vizinhas, mais urbanizadas, passear por seus centros comerciais, mas não era um passatempo que eu gostava muito. Em Mauá, haviam garotas bonitas, mas estavam sempre acompanhadas (frustrante), e não tinha muito o que se ver nas vitrines também, o passeio valia apenas porque Mauá era mais caótica, mais caricata, seus moradores e seus comércios e suas ruas e praticamente tudo era uma grande caricatura disforme. Santo André, apesar das muitas e belas moças, era onde aconteciam muitos furtos e roubos e a população, mesmo os balconistas, eram esnobes (ainda são). Ambas as cidades, verticalizadas pela quantidade de prédios, me impressionavam um pouco, mas eram deprimentes de uma forma geral: Ficava-se em constante estado de atenção, músculos tensionados, respirando fumaça, matando tempo com vitrines do impossível, com a sensação de pobreza de quem só era capaz de comprar uma lata de refrigerante para recarregar as baterias.
E então, havia São Paulo. Nossa capital estadual, uma das maiores cidades do mundo, onde quase doze milhões de pessoas se amontoam por entre as construções. A vida inteira eu ouvi lendas sobre São Paulo: Onde era possível comprar qualquer coisa por menos da metade do preço das outras cidades, onde haviam prédios muito mais altos que os de Santo André, mulheres lindíssimas e aos montes! Lugares legais para visitar... Era natural que eu, ainda inocente (e virgem), conhecedor de pouco mais que três cidades, ficasse curioso.
Meus meios de transporte eram a velha bicicleta e os trens. Quando queria passear em Mauá ou Santo André, juntava meu pouco dinheiro, fruto de bicos, contava o dinheiro dos bilhetes (na época, algo em torno de quatro reais) e deixava separado, descia a pé até a estação de trem, comprava a passagem e me dirigia até a ponta da estação, onde havia um pequeno jardim que algum funcionário da companhia de trens havia plantado e cultivava, era um canto vazio e as pessoas evitavam-no por ser descoberto e em Ribeirão, garoas são frequentes em nove dos doze meses do ano. Normalmente eu decidia onde ia descer (Mauá ou Santo André) durante o trajeto, algo se iluminava em minha cabeça e a decisão vinha fácil.
Sentava sozinho no vagão, literalmente sozinho: Sempre me locomovia fora do horário de entrada e saída dos trabalhos, escolas, cursos e etc. Pensando agora, era como uma dança onde eu sempre fazia de tudo para evitar as multidões de pessoas, para fugir delas. Sinceramente, ainda faço, ainda fujo.
Numa manhã de sábado ou domingo, disse a meus pais que ia passear em Santo André. Fiz tudo que era costumeiro: Contar o dinheiro, descer até a estação, comprar o bilhete... Porém, durante a viagem, não me lembro bem o porquê, decidi mudar de destino e ir até o fim da linha ferroviária, ir até a Estação Terminal Luz. Eu sabia que a Estação da Luz era o coração de São Paulo e a muito tinha curiosidade em conhecer aquela cidade. Sempre fui desobediente, nenhuma surpresa até aí, mas não posso negar que estava tomado por uma excitação mista com nervosismo que me alimentava. Era uma aventura para mim, estava desbravando territórios até então desconhecidos, poderia (por mim mesmo) comprovar as tais lendas sobre São Paulo.
O trem diminuiu a velocidade, olhei pela janela e vi prédios enormes, altíssimos, amontoados em um pequeno espaço, vi muitos moradores de rua nos arredores da linha férrea e pichações em todas as paredes. Diminuiu um pouco mais e anunciou a próxima parada, Estação Terminal Luz, pedindo para que desembarcasse pelo lado esquerdo do trem, tomando cuidado com o vão entre o trem e a plataforma. Parou. Desci, dei alguns passos para frente, olhei para cima, o teto da estação, tão alto, suspenso por grossas e enormes colunas de ferro. As dimensões eram verdadeiramente maiores. Desci para os túneis subterrâneos, procurando uma saída, vi em uma das paredes um mapa e me situei, decidi que iria na tão falada Rua Santa Ifigênia, onde se podia pagar bem barato em diversos produtos eletrônicos. Saí da estação na Rua Cásper Líbero e de acordo com o mapa, bastava seguir em frente.
A paisagem era grotesca: Prédios caindo aos pedaços, vários vendedores ambulantes e seus produtos falsificados, lanchonetes com higiene duvidosa, ruas imundas que fediam a merda e mijo humano, mais pichações, mais moradores de ruas, o ar era cinza e as pessoas que passavam por mim estavam todas em aparente pânico, todas andavam apressadas e temerosas e tinham um aspecto sofrido em toda e qualquer feição que possuíssem.
A Rua Santa Ifigênia estava lotada de todo tipo de gente e todo tipo de comércio: Era possível comprar uma lâmpada, um aparelho de som, reparos para auto-falantes, componentes eletrônicos, televisores, instrumentos musicais, câmeras fotográficas, filmes, computadores e programas, consoles e jogos, controles remotos, fios, esquemas técnicos, impressoras, antenas, celulares... Era quase inacreditável que tantas coisas pudessem ser encontradas em tão curto espaço. Enquanto caminhava, ouvia os muitos rapazes (e algumas moças) gritando no meio da rua, fazendo suas propagandas:
- CONTROLES REMOTOS! CARTUCHO DE IMPRESSORA! TÁ BARATO!!! TÁ BARATO!!!
- OLHA O DVD, OLHA O DVD!!! SHOW, FILME, DESENHO!!!
- É CELULAR, CELULAR É AQUI COMIGO! VAI PAGA BARATO!!! É QUALIDADE!!!
E quando você se aproximava eles diziam com voz mansa:
- Posso ajudar, fera? Tá procurando o quê?
- Fala campeão! Tá precisando de ajuda?
- Oi amigo! É GPS o que você procura?
E caso alguém respondesse eles levavam até a loja que os pagava. É uma dinâmica interessante, que persiste ainda nos dias de hoje, pode-se dizer que é um dos vícios daquela rua.
Andei sem falar com ninguém, fiquei na minha, olhei uma ou outra loja e me dei conta que mesmo as travessas também eram cheias de lojas. Depois de visitar uma loja de instrumentos musicais em uma esquina, decidi ir embora pois já estava entardecendo e eu não queria demorar, além de desolador, os entornos da Rua Santa Ifigênia eram violentos e roubos e furtos eram muito comuns. O vendedor da loja de instrumentos musicais me disse para seguir na travessa que no fim estaria na estação ferroviária, era a Rua dos Gusmões. Conforme fui seguindo na travessa, tudo foi ficando ainda mais bizarro: As lojas foram desaparecendo e dando lugar a desmanches de quinquilharias, de computadores antigos e aparelhagem de som (potências, mesas e amplificadores), e pouco mais adiante, os desmanches também foram desaparecendo para dar lugar a inúmeros puteiros. As mulheres, todas já bem acabadas e desgastadas, por volta de seus quarenta ou cinquenta anos de idade, ficavam nas portas de supostos "hotéis" e elogiavam todos os transeuntes que passavam, convidando um ou outro para uma foda. Comigo não foi diferente: "Vem cá, gatinho! Vem! Fica aqui comigo...", "Oi lindinho, que olhos bonitos você tem! Não quer entrar um pouco e conversar?", "Nossa... Que gostosão! Vem ficar comigo, vem?".
Passei direto, evitando ao máximo estas senhoras. Não que tivesse qualquer preconceito com o ganha pão delas, mas queria dar o fora dali o mais rápido que conseguisse, pois, haviam também naquela rua, muitos usuários de drogas, sujos e maltrapilhos, totalmente mergulhados (e entorpecidos também) em seus próprios abismos, capazes de qualquer coisa por mais uma pedra de fumo, mais uma carreira de pó ou qualquer outra coisa que os tirasse de si mesmos.
Acelerei o passo, entrei na estação, comprei o bilhete e finalmente embarquei. Foi uma aventura e tanto, ainda que tenha sido decepcionante. São Paulo realmente tinha prédios altos, mais altos (e também os mais despedaçados) que todos os outros que já tinha visto, tinha muitas mulheres de fato, ainda que não eram nenhum pouco belas, já tinham sido derrotadas pelo tempo e a brutalidade das vidas que levaram, e talvez a única verdade sobre São Paulo fosse referente aos preços, tudo era muito barato, é verdade. Pensei na quantidade de drogados e moradores de ruas que vi, no olhar triste das prostitutas e suas mentiras, era um pouco perturbador pensar nisso e ainda sim não pude evitar.
Eu fui derrotado pelo pátio das escolas durante toda minha infância, tive poucos (mas leais) amigos, apanhei sem motivo e fui ao chão para me levantar cheio de raiva diversas vezes e naquele dia, pensei que ia descobrir um mundo novo, melhor, mais evoluído (como é esperado de uma metrópole) e acabei por apenas confirmar que não importa onde ou quando ou porquê, o sofrimento e a desolação estão em todos os lugares, e não apenas eu (na minha raiva), mas todas as pessoas estavam condenadas a isso, a nascer aqui, crescer e morrer aqui, nessa terra de crueldades, de injustiças, de descrença.
Tudo que encontrei no final daquela aventura, foi a morte da esperança.