Pequenas histórias 84

saboreava a última

...saboreava a última, era última prometeu a si mesmo enquanto o copo a sua frente tomava proporção grande, riu, já estava meio alto, riu novamente, sim, era a última, o pessoal já tinha ido embora, olhou em volta, sentado na calçada, a espuma da cerveja escorrendo pelo branco plástico da mesinha, o movimento aumentava, ficou sozinho, isto é, nunca se sentia sozinho, sempre tinha alguém que puxava conversa, no entanto estava sozinho, o último a ir embora foi Cava e esposa, prometera que amanhã iria almoçar com eles, prometera sem saber se cumpriria, prometer é uma coisa cumprir era outra, não gostava de prometer nada, mas com eles era diferente, não iria desapontá-los, notou que olhavam para ele, ergueu os olhos deparando com uns olhos azuis que o fitava, ficou desconcertado, já passara por isso, mas das outras vezes os olhos tinham chispas de feminilidade, e esse não sabia distinguir, parecia olhos andrógino, ora parecia feminino, ora parecia masculino, eu hein, que raios, o que seria, o que poderia ser, bom, como dizia a defunta da minha tia que foi tarde, a noite todos os gatos são pardos, não, espere não era isso que ela dizia, o que ela dizia era, saiu na chuva é para se molhar, ele não estava ali para se molhar, eu hein, quer saber, vou terminar logo essa maldita caipirinha e dar o fora, já são quase meia noite, não posso perder o metrô, senão vou ter que ficar andando pela cidade até o metrô começar a rodar novamente, eu hein, levantou-se com o copo na mão, se postou apoiado ao balcão, na estava mais vendo o sujeito, pediu a conta, enfiava a mão na bolsa tiracolo quando o avistou, que esse cara quer, franziu a testa, guardou o troco e saiu, pegou a esquerda, chegando na Paulista virou a direita, olhou para trás, lá estava o dito cujo olhando para ele, eu hein, desceu as escadas, ainda bem que a plataforma se encontrava vazia, como sempre, fez duas baldeações, já passava da meia noite quando entrou no metrô Sé, assim que o trem encostou, entrou e sentou no primeiro banco, ao levantar a cabeça percebeu um senhor de seus quarentas anos, de cor, apoiado no ferro perto da porta, quando chegava no Brás, o senhor lentamente foi se abaixando, deitou de comprido no assoalho do trem, o rapaz que estava ao meu lado, levantou-se e disse: ajude a colocar ele sentado, dois rapazes o ajudaram e colocaram ao lado dele, sentiu uma amargura, o que será que o homem tinha, bêbado não era, não estava com essa aparência de bêbado, pensou, veio a mente vários motivos que levaram o coitado a se encontrar naquele estado, nisso começou a emitir sons desconexos, como se gritasse pedindo ajuda e ninguém não lhe desse atenção nenhuma, na estação Bresser os rapazes, seguraram a porta do trem, um saiu correndo chamar o segurança, dali a instantes vieram dois, deitaram o coitado do homem na padiola e o levaram, os rapazes soltaram a porta e o metrô seguiu viagem, chegando no Tatuapé, ele desceu com o peito meio apertado, mas não se sentia deprimido, pois sabia que tudo isso é parte da vida, não há outra maneira de não ser assim, cada um tem que passar as suas conseqüências, cabisbaixo, pensando, disse mentalmente, não sei o que faria se um dia chegasse a esse ponto, mas nesse caso a história seria outra, deu de ombros, deixou-se sorrir, saboreava a suavidade da noite que avançava na madrugada, quando viu o cara, eu hein...

pastorelli

Pastorelli
Enviado por Pastorelli em 25/04/2015
Código do texto: T5219612
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