A Primeira Maldade
Eu nasci numa cidadezinha do interior que prefiro não dizer o nome. Apesar de tudo de ruim que me aconteceu por lá com o passar dos anos, ainda tem muita gente honesta naquele lugar. Tem gente ruim e gente boa no mundo inteiro. Não sei se tem mais desgraçado que gente benfeitora, prefiro nem saber, mas posso lhe dizer que nessa cidade tem gente boa, sim. O povo maléfico fica pelos cantos escuros, se escondendo por trás de sorrisos falsos e se afogando em crueldade. O pior é pensar que gostam de fazer maldade. Isso me faz lembrar da vez que vi um velho desses bem carcomidos, matando um cachorro. Eu devia ter uns cinco, seis anos de idade. Acho que foi a primeira maldade que vi na vida. O velho estava andando na calçada e passou por mim com cara de quem comeu coisa amarga. Olhou para mim com olhos de ódio e tenho certeza que se tivesse no caminho dele me metia uma bica na cara, também. Era um velho muito estranho, acho que nunca vou esquecer daquele carão cinzento, de olhos fundos e pretos, e daquela boca desdentada. Vi seu rosto por uns 5 segundos e até hoje me lembro porque tem coisas que a gente não esquece, nem se quiser. O velho foi andando, murmurou num tom ríspido e com uma estupidez cortante para que eu saísse da calçada.
O cachorro estava a poucos metros de onde eu brincava com meus carrinhos. Não estava fazendo nada de mais, só estava deitado pegando um solzinho na frente da padaria do meu pai. O velho foi se arrastando feito um esqueleto ambulante quando se deu conta que o cachorro estava na sua frente. O cachorro era grande, parecia uma mistura de labrador com pastor alemão, e já devia ser velho porque raramente saia dali. Até meu pai que era um sujeito bem amargo não se importava com o cachorro lá na frente e deixava eu dar o resto da comida que sobrava pro coitado antes de fechar a padaria. O bicho era um ser infeliz e hoje entendo que veio pra esse mundo pra sofrer. É claro que naquela época não entendia nada disso. Achava ele bem tranquilo e também achava que não falava porque tinha preguiça. O bom de ser criança é que a magia está em tudo que se vê e não se entende muito de tristeza e nem de ruindade.
O velho começou com um chute bem na cara do cachorro que caiu pro lado e ganiu bem alto. Gente mesmo na calçada só tinha eu e o velho, mais ninguém. Meu pai devia estar no escritório que ficava sobre o estabelecimento, aterrado em contas e pedidos a serem feitos. Passava um povo de bicicleta de vez em quando, mas na hora que o velho estava maltratando o cachorro ninguém passou. Eu fiquei olhando o coitado sendo chutado e não pude fazer nada. Afinal, eu era pequeno e o velho mau, o que eu podia fazer? O cachorro levantou e tentou fugir. Estava com a carinha toda ensangüentada, deu uma dó danada. O velho pegou o cachorro pelo rabo e pisou com tudo nas costas do cachorro. Foi uma pisada tão forte que eu não acreditei. Parecia que a raiva pelo cachorro tinha dado algum tipo de poder super-humano para aquele ser que minutos antes parecia tão frágil. O cachorro se abriu todo no chão. Ficou gritando tanto que era impossível o bairro inteiro não ter ouvido. Hoje acredito que ninguém estava nem aí com o coitado do animal. Tanta coisa pra se preocupar e vão logo dar atenção para um vira-lata sendo espancado por um velho rancoroso. O velho pisou mais umas 3 vezes no cachorro que já não produziu som nenhum depois da terceira vez. O velho ficou parado, olhou para os lados e para trás, e pude ver que estava bem assustado. Estava com uma expressão de desespero no rosto, sabia que o que tinha feito era horrível, mas depois seguiu andando. Depois que ele já estava bem longe eu cheguei perto do cachorro e vi que estava morto. Havia bem pouco sangue, mas dava pra perceber que o coitado estava todo quebrado por dentro. Lembro de ter tido um terrível clarão como se naquele momento todo o mundo fizesse sentido. Olhando para aqueles olhinhos sem vida, a língua de fora, e os pelos amarelados cobrindo a pele pisoteada, me dei conta de que o mundo não era bom. Tentei segurar as lágrimas, mas não consegui. Chorei muito, talvez como nunca tenha chorado na vida. Era um choro que inaugurava o meu nascimento nesse mundo tão cheio de crueldade.