Pecados Conjugais

Pecados Conjugais

Quando chegou ao ápice sentiu que algo maior dentro dele se esvaiu, junto com o calor antes preso nos lençóis daquele motel. Caminhou num torpor sonâmbulo aquém da chuva e de si mesmo. A maré de pessoas junto com os solavancos do coletivo não foram capazes de trazê-lo à tona, mas assim que a mão tocou na alça de ferro e a aliança atritou-se, veio o fluxo de consciência e o peso da culpa recaiu sobre ele vergando levemente os seus joelhos.

— Maria...

Reteve o nó na garganta e engoliu seco, em três anos de casamento nunca pensou estar com outra mulher. Maria era tão solícita, um anjo doce cujos beijos não despertavam fogo, pelo contrário, traziam a calma. Não havia renúncias ou brigas, a submissão o fazia crer que houvesse alguma necessidade incutida nela em agradá-lo a todo instante, e por esse motivo a noção do que havia feito o deixava sufocado.

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“Pois não, Seu Ricardo.”

“Deseja mais alguma coisa, Seu Ricardo?”

“Às ordens, Seu Ricardo.”

Aline preferia ser chamada Lili, mas ele sussurrava Lilith quando estava sozinho observando-a serpentear do lado de fora da sua sala, num convite a morder o fruto proibido. Cada vez que ela vinha trazer papéis para ele assinar, sentia o intumescimento ao olhar o decote profundo onde um pingente minúsculo de anjinho balançava. A meia calça negra, os sapatos salto agulha, vermelhos como os lábios volumosos que faziam questão de carregar na pronúncia “SSSeu Ricardo”.

Era o primeiro mês após montar consultório próprio, o primeiro passo para ascensão. A princípio Aline vestia-se de modo sóbrio, mas quando menos percebeu os decotes e demais insinuações já estavam diante dele. Suportou de todas as formas evitando olhá-la quando suas mãos polidas e unhas rubras abriam a porta, então pensava em Maria a caminho do altar. A saia colada demarcando a minúscula calcinha era expulsa quando evocava Maria, linda, de véu e grinalda dizendo sim para ele diante do padre. Os papéis caídos propositalmente no chão, os glúteos redondos direcionados para os seus olhos. Maria no fogão, cansada, sempre correndo, sempre sem batom, desculpando-se pelo atraso para chegar em casa, os cabelos desgrenhados...

Pôs-se em pé e avançou em disparada, vencido. Agarrou os quadris puxando-os com força para si. Aline acreditava que para subir na vida teria que começar por baixo, então se agachou diante do chefe, Ricardo.

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A chave na fechadura demorou para ser girada, Ricardo não queria se afogar no olhar castanho e sempre dúbio da esposa. Abriu a porta, hesitante e Buka passou por ele sem lhe dirigir o olhar. Levantou as patinhas nos vasos mal cuidados do pátio e urinou demorado. Depois arranhou o chão e correu apressadinho para dentro. Ele riu dos modos esnobes do buldogue, mas logo voltou a franzir o cenho ao pensar em Maria.

Toc... toc... toc... O solado do sapato na cerâmica era tão denunciador quanto às batidas do seu peito. Farejou o ar a fim de certificar se Maria estaria preparando o jantar. Nada. Cruzou a divisa e suspirou aliviado. O cão esperou os olhos se cruzarem para empurrar a vasilha com o focinho. Ricardo serviu ração a Buka e se sentou à mesa deixando o relógio devorar o tempo. A esposa chegaria atrasada e suada dizendo que tinha ficado presa no trânsito, viriam os beijos e ela faria o jantar apressada. Ele, o sultão... Naquele momento a culpa o impeliu em ficar de pé. As panelas foram postas sobre o fogão e em poucos minutos o cheiro da comida preencheu a casa toda.

Maria chegou e ele evitou olhar em seus olhos enquanto ela retirava o casaco, ambos se abraçaram e Ricardo pôs mais força que o necessário vendo-se prestes a confessar tudo ali mesmo. Ela tentou desvencilhar-se, um fio de medo correu pelas costas dele ao imaginar o julgamento da esposa. Olhou seus cabelos embaraçados, sobre o seio esquerdo uma marca vermelha exposta como moeda, nos lábios nenhum batom. Ricardo apontou para marca e disse desinteressado:

— Algum bichinho te picou aí.

Ela corou e pôs a mão no seio, saiu para o banho e Ricardo se lembrou do celular na mesinha. Um estremecimento o fez apressar-se e o visor piscou assim que ele entrou no quarto.

“Ainda sinto seu cheiro. Ass: Lili”

Sentiu mais uma vez as pernas falharem, olhou o celular de Maria que também brilhava. Esticou o braço, mas ela foi mais rápida que ele. Beijou-o da forma mais voluptuosa que podia, atirou a toalha fora e ambos deitaram executando uma dança mecânica e sensabor.

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A comida quase não era mastigada, Ricardo observava Buka lambendo os dedos de Maria que lhe cedia um pedaço de carne. Ele alisava a cabecinha quadrada do Buldogue castrado, e avaliava que o animal havia acabado de devorar uma tigela cheia de ração, mas permanecia ali, saciando a gula como se assim pudesse compensar a virilidade amputada.

Prestes a adormecer Ricardo apagou todo o histórico e esperou a mulher parar de rir para o celular enquanto batia os dedos frenéticos no visor do aparelho. Tentou articular a confissão, mas os lábios grossos de Aline apareceram em sua frente pronunciando o nome dele.

Maria apagou a luz e se deitou com ar tão inocente que o peito de Ricardo parecia que ia explodir. Calou-se e também atirou o corpo no colchão beijando a esposa como se, com isso, certificasse que ainda a amava. Virou de lado e logo sentiu as mãos lhe apertando e a frase que feriu seus ouvidos.

“Eu te amo.”

— Eu também te amo.

Respondeu mecânico o mais rápido que pôde.

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Quando o visor do celular de Maria acendeu, a culpa já havia colado as pálpebras de Ricardo. Ela sorriu um riso cheio lascívia ao ler a mensagem.

“Também estou contando os minutos. Use renda como hoje. Prometo muitas marcas na pele e na alma.”

Maria riu baixinho e as imagens libidinosas vieram embalar seu sono. Ricardo acordou de madrugada ouvindo gritinhos abafados, ele riu sem imaginar que a esposa sonhava com algemas e chicotes nunca usados com ele.

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Originalmente escrito para o desafio Pecados Capitais do Blog EntreContos.

Maria Santino
Enviado por Maria Santino em 14/04/2015
Código do texto: T5206259
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