Reencontro
Já passava da meia-noite. Depois de uma tarde bastante chuvosa, a lua brilhava no céu. Estava frio, Carlos fumava desesperadamente um cigarro atrás do outro. A sala da casa, já bastante impregnado de fumaça e o cheiro de alcatrão que exalava da bomba relógio que ele segurava à mão, deixava aquele ambiente irrespirável. Quando estava fumando parecia uma Maria-fumaça, locomotiva a vapor, tal a constância da expedição de fumaça pela boca. Escarrar era ação rotineira em sua vida. Ultimamente sobrevinha sempre secreção de cor verde-escuro, uma salada de microrganismos.
Sim, para ele o cigarro era bomba relógio. Cardíaco, hipertenso e diabético. O seu médico já o proibira de fumar e ele já ensaiará varias vezes parar. Parara algumas vezes, em intervalo máximo de quarenta dias. Bebia também, mas aos poucos foi deixando esse vício. Não por vontade própria. O uísque, única bebida destilada que ele apreciava, tinha que ser importada, alcançará preço além de suas condições financeiras atuais. Ele nunca aceitou outra procedência.
Como já disse, passava da meia-noite. O aposentado por invalidez consultava seu relógio de pulso constantemente. O desespero tomava conta dele. Seu pensamento voltava-se para o passado: — Isso não deve estar acontecendo novamente, ela havia prometido. Não sei se aguentarei mais essa traição.
Filme lacrimal escorria de seus olhos. Da garganta saiam sons de pigarros, provocados principalmente pelo cigarro e a baixa umidade do ambiente, portas e janelas todas fechadas, cortinas cerradas. Isso não o impedia de olhar o vazio da rua, ainda molhada. Nenhum sinal de carro, do carro dela.
Carlos e Mariza se conheciam desde criança, ela mais nova do que ele uns cinco anos. Eram vizinhos. Quando ela completara quatorze anos eles começaram a sair juntos, não era namoro, apenas companheiros de cinema e festas. Carlos, tímido, reservado e calado tinha a permissão dos pais de Mariza para acompanhá-la em seus passeios. Ele gostava, ela era a sua única companhia. Ambos eram filhos únicos e o rapaz gostava da companhia da moça, se sentia feliz nos momentos que estava junto a ela.
— É uma proteção, dizia a mãe de Mariza.
Aos vinte e um anos Carlos foi cursar medicina em São Paulo, um sonho. A separação foi dolorosa. Eles fizeram promessa de se encontrarem durante as férias do futuro médico. Ela não iria sair de sua cidade natal, promessa feita a ele.
Nas três primeiras férias de Carlos as promessas foram cumpridas. Os passeios, aos sábados, eram longos, estavam redescobrindo a cidade que guardava o início de suas histórias — os lugares passados durante a infância, o início da adolescência, os caminhos que os levavam à escola, à praça principal, onde gostavam de ficar sentados naquele banco, que até hoje ostenta gravado o nome de ambos. A separação era sempre traumática para ambos, embora uma semana depois suas vidas retornassem à normalidade da cidadezinha.
Durante o período de aulas eles pouco se comunicavam, uma ou outra vez, um telefonema. Carta, quase nunca. Na verdade apenas uma, quando Mariza anunciou que estava namorando, que ela não poderia mais acompanhá-lo nos seus passeios de férias. Carlos ficou desesperado, quis abandonar o curso de medicina e voltar imediatamente para casa. Foi desaconselhado por um professor a não fazer isso, seria um desastre na vida dele, só faltava um ano para se graduar. — Ser médico é missão muito nobre, completou seu professor.
Desistindo de seu intento, o futuro médico confidenciou ao colega de quarto que nunca mais voltaria à sua cidade. Que iria fazer tudo para trazer a família para São Paulo. Tirá-la daquela cidade o desobrigaria de visitas constantes. Três anos depois ele cumpriria seu desejo, todos agora moravam na capital paulistana.
Mariza continuava em sua cidade, casara-se e não vivia bem com o marido, que só pensava em negócios. Grande plantador de cana de açúcar, rude, o dinheiro falava mais alto. Passava boa parte na fazendo, quando não viajando para fechar vendas para a sua colheita. Sua referência era a bolsa de mercadorias e futuro. Uma doença o impossibilitado de gerar filhos, descontava suas frustrações na esposa. Já não a procurava para o sexo desde que descobriu sua incapacidade procriadora.
Mariza, cada vez mais infeliz, quase não saia de casa, amargurava sua falta de sorte no casamento pensando em Carlos. De contato perdido há anos, ela se perguntava: — Onde estaria ele? Casara-se? Tem filhos? Perguntas sem repostas, pois nem mesmo da família dele tinha notícias.
Para espantar seus males, a abandonada esposas resolveu procurar divertimento fora de casa. Conheceu um rapaz mais novo que ela e passou a ter encontros furtivos. Isso durou até o marido tomar conhecimento das façanhas da mulher. Colocou-a para fora de casa, sem antes impedir que ela levasse consigo qualquer pertence. Ela saiu de casa com a roupa que estava no corpo, quase com uma mão na frente e outra atrás.
Marina se refugiou em casa de prostituição na cidade vizinha a sua. Foi lá que Carlos a encontrou, depois de mais de trinta anos sem contato algum. Um amigo de infância deu ao médico o paradeiro de Mariza. O médico, que continuava solteiro, levou-a para sua casa em São Paulo, acolheu-a com carinho e pediu para que ela permanecesse ali até a sua volta, pois teria que realizar cirurgia em paciente que se encontrava hospitalizado em cidade próxima à capital paulista. No retorno de Carlos acertaram que ela não mais voltaria para a casa de prostituição, e que ambos passariam a viver maritalmente. Selaram acordo de respeito mútuo e fidelidade.
Já estavam juntos há quase quinze anos. Nada faltava para Mariza, o médico era só atenção e carinho. Com a aposentadoria, Carlos dedicava todo o seu tempo à companheira. Nos primeiros anos viajaram bastante, principalmente para a Europa. Parecia que agora eles ficariam juntos até que a morte os separasse, condição esperada para se estender no tempo. Carlos estava feliz. Mariza, em harmonia consigo mesma e com o mundo.
Naquela noite Mariza saiu cedo. Antes tomara banho, colocara o melhor vestido, saltos altos, cabelos bem penteados, lábios exageradamente pintados por batom escarlate, olhos também pintados, com contornos grossos e pretos, algumas joias para adornar o seu rosto e busto, machucado pelo tempo, perfume francês de frasco já quase no fim. Olhou para Carlos, que se encontrava sentado em uma cadeira em canto escuro da sala, e falou com rispidez: — Vou sair!
Carlos não entendera nada, nunca haviam brigado. Apenas eles não faziam sexo há mais de três anos. A doença o havia deixado impotente e sempre irritadiço. Não maltratava a mulher, mas evitava ficar muito tempo próximo a ela. As conversas entre os dois eram apenas triviais. Mariza cuidava da cozinha, da limpeza da casa, dos remédios dele, e o resto do tempo passava vendo televisão.
Meia-noite e trinta minutos o telefone toca. Carlos se assusta e corre para atender. Do outro lado da linha alguém pergunta:
— É o Dr. Carlos Alberto Nogueira?
— Sim, quem fala? Perguntou nervoso Carlos.
— É do Hospital Central. A senhora Mariza deu entrada neste hospital há três horas. Um acidente a vitimou. Antes de ela morreu deu o número de seu telefone e nome.
Do outro lado da linha ouve-se um baque, Carlos acabara de ter um ataque cardíaco fulminante.
No outro dia a televisão noticiou a morte do casal. Em nota o Instituto Médico Legal procurava pelos parentes e amigos das vítimas. Ninguém apareceu, foram enterrados como indigentes.
Gilberto Carvalho Pereira
Fortaleza, 2 de abril de 2015