Chapéu de Palha
Juraci era um sobrevivente. Nasceu na fazenda, onde seus pais eram agregados. Depois mudaram para a cidade. Família de pouco recursos, cresceu pelas ruas, aprendendo muita coisa errada. Seu rendimento escolar era baixíssimo, apesar dos esforços de sua mãe. Assim ele cresceu, aos trancos e barrancos. Trabalhou em vários subempregos, fazia bicos, se virava. Tocava a vida, ora ouvindo seus pais, ora fazendo o que lhe desse na telha. Quando se tornou adulto, arrumou um emprego melhor, numa distribuidora de bebidas, passou a morar sozinho, assumiu seu próprio destino. De vez em quando ainda exagerava na bebida, fazia arruaças, confusões. Mas o Juraci tinha amigos, além dos companheiros de bebedeiras. O próprio delegado nunca o prendera, mas sempre lhe dava um sermão nessas ocasiões.
Quando o conheci, Juraci já tinha mudado de vida. Era casado, tinha um filho, e tocava um pequeno negócio, um bar. Local pequeno, simples, onde servia um tira-gosto de língua bovina delicioso. Já era casado com a Iolanda. Professora primária, acostumada a disciplinar alunos. Dizem que ela endireitou o Juraci. De fato o Juraci a tratava com todo o respeito, quase reverencial. Longe dela ele se soltava um pouco mais. Mas a influencia positiva da esposa era evidente em sua vida. Para melhor.
Tendo o conhecido nessa fase da vida, só pensava que era uma boa pessoa, um dono de bar competente e, sobretudo, um cara divertido. O casamento com Iolanda foi sua salvação, diziam. A família dela foi contra, não conseguiam ver futuro naquele rapaz de pouca instrução e passado duvidoso. Mas Iolanda, fisgada por aquele espírito alegre e divertido, resolveu bancar o casamento. A atividade de professora já lhe permitia uma vida independente, restando à família conformar-se e torcer para ela não estivesse enganada.
O bar do Juraci tinha algumas vantagens. A cerveja era geladíssima. O tira-gosto era muito bom. E, sendo língua bovina, rendia mais, porque nenhuma mulher, que por acaso estivesse na mesa, tinha coragem de comer. Outro detalhe interessante é que ele também sentava em nossa mesa e ajudava a beber a cerveja que nos vendia. De forma controlada, nunca o vi bêbado. Parecia uma estratégia de marketing. Onde houvesse uma mesa com pessoas, digamos, não tão alegres, ele sentava, contava uma piada, bebia um gole, distribuía tapinha nas costas, enfim, animava a rapaziada.
O Juraci já era, praticamente, um homem sério. Comerciante, chefe de família, só bebia socialmente, tudo por influência de dona Iolanda, moça direita, criada na igreja e nos bons costumes. Era visível que o Juraci se esforçava para se enquadrar no mundo da Iolanda. Mas seu passado, inadvertidamente, um dia o encontrou novamente. Naquele ano, tudo foi de água abaixo. Ao começar o carnaval, Juraci foi envolvido por antigos colegas de farra e bebedeiras, sumiu de casa na sexta-feira. Bebeu e dançou como um alucinado, como que recuperando o tempo perdido. Não sabe onde esteve direito, nem onde dormiu, se é que dormiu alguma vez.
Na quarta feira de cinzas, finalmente, se conscientizou da besteira que tinha feito. Sua esposa só está te esperando pra acabar o casamento, disseram, enquanto ele tentava esquecer o som dos tamborins, ainda presentes em sua mente. Moído pela culpa e pelo remorso, pegou o caminho de casa. No caminho vinha pensando que seu casamento acabara. Iolanda ia triturá-lo vivo. Não tinha desculpa. Agora que havia conquistado algum respeito como cidadão, iria perder tudo por irresponsabilidade. Pensou em se ajoelhar e pedir perdão. Pensou em telefonar. Pensou em pedir ajuda a alguém. Mas sabia que não tinha saída. Ele mesmo devia enfrentar a esposa revoltada. Iria ter saudades daquela vida estável, respeitável, que não fizera por merecer.
Quando chegou em sua casa, a porta estava aberta. Olhou dentro e não viu ninguém, Iolanda devia estar na cozinha. Hesitou. Não sabia se entrava ou chamava a mulher. Levou a mãos a cabeça, num gesto de desespero, e descobriu que estava usando um chapéu de palha. Naquela confusão, ele nem tinha notado. Segurou chapéu nas mãos e entrou na sala. Ouviu os passos da mulher, vindo encontrá-lo. Sem saber o que fazer, jogou o chapéu no sofá e se preparou para o embate. Quando Iolanda o encarou ele sentiu, naquele olhar frio, toda a fúria, toda a frustração, toda a decepção que lhe causara. Reuniu as forças que lhe restaram e falou, antes que ela abrisse a boca.
- Iolanda, sei que estou errado e não vim aqui para me defender. Mas antes que me expulse de casa me responde uma pergunta, por favor – Iolanda já tinha sua decisão tomada, mas se conteve um pouco e aguardou para ver até onde ia aquilo. Juraci acrescentou:
- De quem é esse chapéu no sofá? – e apontou para o objeto. Iolanda, tomada pela surpresa, não tinha uma explicação. Aliás, até então ela nem tinha visto aquele chapéu. Juraci sentiu uma melhora na sua posição e atacou:
- Eu sei que quem não presta aqui sou eu, mas basta eu ficar dois dias fora de casa, quando volto encontro esse chapéu de homem no nosso sofá? – Aquela pessoa, atormentada pela culpa, se transformara, num passe de mágica, num marido traído, buscando explicações. Iolanda reagiu:
- Você não ficou dois dias fora, foram quatro dias! Mas eu não sei... de onde veio esse chapéu... e como é que tu sabe que é de homem?
- Iolanda, tu acha que uma mulher iria usar um chapéu velho como esse? - Iolanda concordava plenamente. Aquela discussão continuou por mais algum tempo, mas Iolanda perdeu a primeira e mais importante das batalhas. Certinha como era, não percebeu, de imediato, a malandragem do marido. Ao usar uma artimanha aprendida nas ruas, Juraci salvou seu casamento. Contudo, sabia que aquele teria que ser seu último erro. Um marido mais atencioso, mais carinhoso acabara de nascer. No carnaval seguinte Iolanda, precavida, o arrastou para um retiro religioso. Assim, aquelas duas almas, cada um a seu modo, construíram uma vida de felicidade, juntando seus dois mundos, aparentemente incompatíveis.