A Fadista
Somos a mistura e chegámos aqui para reivindicar essa diferença. Sentimos uma ancestral nostalgia e o bom da nossa vida, é uma melodia de lamento, saudades do tempo, da história, dos nevoeiros que nos engoliram, regurgitaram, expuseram. Bateram-nos, expulsaram-nos, amaram-nos mesmo quando, proscritos, gemíamos nas sombras da terra, espalhados como papelinhos rasgados ao vento universal. Nós fomos sempre diferentes, tímidos, ousados, paradoxais. Dos silêncios em que nos encolhemos aos gritos que mudam o mundo, somos os tais, disseste-me para justificar a tua rebeldia. As mãos torciam a franja do xaile e, sob cílios densos, só te adivinhei os olhos. Mordias os lábios carnudos e os teus seios jovens mostravam-se, generosamente, presos à renda do decote. Canto, sim, o fado. Comecei por fugir dele, integrei bandas experimentais, sons de batida forte, rodei pelas estéticas da moda, escutei Goligov e Béla Bartók sem enjeitar os Pink Floyd, Joe Cocker, mergulhei no jazz e vivi, por dentro, os espirituais negros. Os meus trinta anos, como vê, não foram inocentes. Cantar fado é como voltar pelas lágrimas a navegar a alma comum, concluíste. Escute-me. As luzes chamam-me ao centro da sala. O solo da guitarra já marca o meu espaço, disseste como despedida. E vi a tua silhueta escura crescer no meio das velas acesas e senti, poderosa, a tua voz arrancar o meu coração.