Fábula da vida urbana (2010)
Era uma vez um gato perspicaz, ainda que muito indolente. Passava os dias evitando o serviço, refrescando-se de patas ao ar. Mantinha seus bigodes bem aparados, com jeito de galã. Mas não passava de um charlatão. Muitas vezes tentou ser o líder da gatalhada, mas gato não é bobo nem nada.
Desiludido, o gato perspicaz decidiu ganhar o mundo. Esperou até que todos os gatos estivessem fora do beco e se mandou. Durante dias a fio caminhou sem parar. Seus bigodes cresceram até formarem uma barba espessa, de operário sindicalista.
Foi então que chegou a um lugar estranho. Não parecia nem um pouquinho com o beco em que morara. Era um subúrbio de gente fina, com casas de alvenaria, carros nas garagens, gente branca e ... cachorros!
O gato perspicaz foi recebido por um verdadeiro comitê canino, todos interessadíssimos em dar um inesquecível boas-vindas. O gato perspicaz, vendo que não aguentaria muito mais daquela correria, mudou de tática. Parou de correr, encarou os cachorros em desabalada carreira com autoridade e os ordenou parar.
Os cachorros pararam, mais estupefatos do que por respeito.
_Atrás daquelas pedras estão escondidos meus melhores guerreiros - blefou o gato. Parem de me perseguir! Quero uma oportunidade para fazer uma proposta de negócio.
Os cachorros se entreolharam. Um enorme Mastiff inglês, com jeito e casaca de banqueiro, adiantou-se:
_Olha aqui, felino. Meu tempo vale ouro. Sou um cachorro riquíssimo e não me interesso por ninharias. Fale logo o que tem a dizer.
_Pois bem. Vocês são ricos, têm casas, comida boa, um bairro bacana, mas vocês até hoje não conseguiram dominar completamente os becos da cidade. Já tentaram, mas a resistência dos gatos foi invencível. Pois bem, dessa vez, vocês poderão extender seu império canino sobre os gatos.
O Mastiff pareceu intrigado.
_E como será isso possível, gato sindicalista?
_Ora, já estou cansado de ser assim conhecido. Quero o poder, quero ser Rei! Vocês, cães, tem o dinheiro, a tecnologia e o saber. Vocês são os donos das fábricas em que nós gatos trabalhamos. Se vocês me apoiarem, os gatos acreditarão em mim, ou melhor, em nós.
_E você acha mesmo que nós cederemos assim nosso capital de mão beijada? - esbaforiu o Mastiff?.
_É claro que não. Mas será muito lucrativo. Diminuirão as greves, a organização felina enfraquecerá e vocês conseguirão maiores lucros. Todos os gatos serão seus súditos e trabalharão para vocês pelo que quiserem pagar. Vocês serão vistos como os benevolentes ministros. Mesmo não sendo gatos, cães interessados no progresso e democracia felina.
Os olhos de banqueiro do Mastiff brilharam.
_Pois bem. Temos um acordo.
E apertaram as patas o cão papudo e o gato pé rapado. No dia seguinte, chegava a comitiva felina-canina nos becos da cidade. Em meio ao estardalhaço de fogos de artifício e massiça propaganda, foi declarado feriado nacional.
Os gatos, a princípio apreensivos, ficaram felizes ao saber de que não precisariam trabalhar naquele dia. Ficaram mesmo admirados com o poder de barganha que o gato perspicaz tinha com o Mastiff inglês. O gato perspicaz discursou:
_Chegou um novo momento. Uma nova era. Seremos um só, ao invés de muitos. E pela primeira vez na história a democracia será para todos. Gatos, nós vivemos mal. Passamos fome, comemos lixo, desperdiçamos nossas vidas. Com o auxílio desses cavaleiros caninos, teremos o melhor da tecnologia ao nosso alcance.
_Queremos carne para os nossos filhos! - gritou uma gata mãe de cinco gatinhos.
_Carne! Ora bolas! Sonham com carne e ossos, não? Sonham com revolução e acham que sozinhos podem fazer tudo. Não podem. Temos a oportunidade de democratizar a saúde, a educação e garantir que cada gatinho tenha o que comer. Não mais carne estragada, agora vocês comerão ração industrializada, direto das fábricas caninas. Além de melhorar a saúde, erradicará a desnutrição na nação felina. Teremos também, de vez em quando, a produção de panetones com verba federal.
Os gatos miavam de aprovação. Parecia que estavam todos no cio, de tamanha excitação e felicidade coletiva.
_Fabriquem centenas de cuecas e pares de meias, imediatamente! Essa será a primeira medida do meu reinado - ordenou o novo rei.
O povo se dispersou, indo cumprir com o ordenado.
_E para quê essas meias e cuecas? - perguntou intrigado o Mastiff.
_Companheiro presidente do banco central felino-canino, é para transportar as riquezas públicas... disse com um risinho felino, mostrando seus dentinhos.