Uma fábrica chamada Brasil (2015)
Havia uma fábrica não muito longe daqui onde se processava a carne oriunda de abatedouros. Todos os tipos de carne - bovina, suína e aviária - ali chegavam em caminhões frigoríficos. Era uma fábrica tradicional da região, fundada por imigrantes europeus e construída com o suor de muitos trabalhadores latinos, mestiços e mulatos. Mas era uma empresa pequena, familiar, e como tal passava por dificuldades financeiras frente a concorrência com fábricas muito maiores. Um belo dia os trabalhadores chegaram às primeiras horas da manhã, como de costume, para mais um turno. Eis que havia uma intrigante placa logo na entrada. Em letras garrafais, lia-se "SOB NOVA DIREÇÃO". Os operários aglomeraram-se um pouco confusos até que um sujeito bem arrumado veio em sua direção. Era o novo diretor da fábrica, apontado pela corporação trilhonária que havia adquirido a instalação, o estoque de carne e a massa de trabalho, tudo a um preço razoável.
O hábil administrador rapidamente ganhou a confiança dos trabalhadores e lhes assegurou que nada de fato mudaria. E ainda os motivou dizendo que ele havia sido enviado para modernizar aquela fábrica, deixá-la mais ágil e mais produtiva. É claro, alguns dos operários, aqueles mais experientes e conhecedores das engrenagens da vida, não engoliram aquela história mal passada. Mas a maioria do turno foi feliz da vida ter sua força de trabalho extraída, agora para um novo e mais poderoso patrão. Para desespero da minoria.
E eis que o primeiro dia de trabalho se passou e, conforme prometido, nada de fato mudou. Mas logo no segundo dia, o diretor teve uma reunião com os demais administradores da fábrica e lhes apresentou um plano de redução de custos e aumento da produtividade em escala exponencial. Todos os subalternos de colarinho branco ficaram muito entusiasmados com o plano do chefe, afinal, quem da área de negócios não gosta de ouvir as palavras mágicas "aumento do bônus"? Mais quantidade produzida a um menor custo significava mais lucro para a corporação trilhonária, é claro. Mas uma pequenina parcela desse suculento bolo seria dada aos hábeis administradores que ajudassem a implementar o pacote de medidas do querido diretor. Não houve quem se opusesse.
A primeira medida foi, como se pode imaginar, aumentar a quantidade de máquinas. Mas o diretor não estava satisfeito com o aumento da quantidade produzida pois era imperativo reduzir custos. Logo, ordenou também que se demitissem alguns dos funcionários. Então, havia mais máquinas para abastecer e gerenciar e menos funcionários para fazer o serviço. Alguns dos trabalhadores questionaram essa medida, mas o diretor habilmente reconquistou a confiança argumentando que todos deveriam fazer sacrifícios em época de crise. E, como sinal de boa fé, permitiu que os funcionários levassem carne para casa, aqueles que atingissem a meta individual de produção, é claro.
E assim os trabalhadores remanescentes continuaram a trabalhar mas agora em um ritmo mais obstinado. Tinham que correr para dar conta de várias máquinas ao mesmo tempo pois a produção jamais poderia parar. Alguns dias depois, um hábil administrador observou que os funcionários do setor de produção estavam indo menos ao banheiro. Ao levantar essa questão em uma das várias reuniões da equipe, o diretor aproveitou a deixa para apresentar sua próxima medida: reduzir a quantidade de banheiros e passar a cobrar uma pequena taxa de limpeza. Tendo em vista que os funcionários estavam se dedicando mais ao trabalho, gastavam menos tempo em atividades não produtivas, tais como ir ao banheiro. Logo, podia-se reduzir a quantidade de banheiros sem nenhum prejuízo. E a taxa de limpeza, a ser paga pelo funcionário ao utilizar aquele espaço, serviria como forma de isentar a fábrica da manutenção do mesmo.
Tão envolvidos estavam em seus trabalhos, cuidando das máquinas e cuidando que as máquinas não fizessem mau uso de suas próprias carnes, que os trabalhadores nem perceberam quando fecharam boa parte dos banheiros, transformando-os em escritórios e depósitos. Também não se assustaram com a taxa de limpeza, afinal era uma pequena quantia a ser paga cada vez que o espaço fosse utilizado. E como não tinham muito tempo mesmo para ir ao banheiro, não viram nenhum grande problema.
Um outro dia, durante mais uma das reuniões, um administrador comentou que alguns dos colaboradores do chão de fábrica haviam comentado que se sentiam um pouco sonolentos após o almoço, reivindicando um intervalo maior. O hábil diretor percebeu a oportunidade de fatiar uma vez mais os custos. Argumentou ele que não era necessário estender o já longo intervalo. Segundo ele, o problema estava na quantidade excessiva de alimentos ingeridos durante o almoço, algo que colocava em risco a saúde mesmo dos colaboradores. Era imperativo, portanto, reduzir um pouco o valor nutricional dos alimentos ofertados e também reduzir um pouco a porção de alimento servido. De preferência, orientou ele a seus subordinados, que comprassem gêneros alimentícios que estivessem com baixo preço, mais baratos.
Os trabalhadores estranharam um pouco a nova comida, mas já que ela foi introduzida com uma campanha de saúde temporária conduzida por duas simpáticas estagiárias de nutrição, eles não perderam muito tempo pensando a respeito. Até porque não havia muito tempo mesmo. Logo, deveriam retornar para as incessantes máquinas que, ao contrário deles, deviam ser alimentadas continuamente.
Passados alguns dias e tendo sido a medida anterior um sucesso, o diretor ordenou que de agora em diante a carne consumida pelos colaboradores durante o almoço deveria ser comprada de outros fornecedores mais baratos, uma vez que a carne produzida ali destinava-se à exportação. E, assim, conseguiu reduzir mais ainda o outrora delicioso bife de custos. E, observando que o problema da sonolência havia sido reduzido e que de fato os trabalhadores estavam levando menos tempo para se alimentar, ordenou o corte do intervalo de almoço em um quarto. Ninguém deu muita importância a isso.
E assim, gota a gota, o diretor foi sangrando a estrutura "não-produtiva" da fábrica, privando os colaboradores de toda e qualquer amenidade. E ninguém se importou porque ninguém já se lembrava como era trabalhar antes naquele lugar. E, como se pode imaginar, alguns acidentes começaram a acontecer. Isso apesar de toda a habilidade dos colaboradores de chão de fábrica em cuidar que suas carnes não alimentassem as máquinas e que acabassem sendo exportadas para o outro lado do mundo. Mesmo com tal cuidado, mas a um ritmo frenético e sem descanso, "acidentes" ocorreram. Eram tratados como "acidentes", coisas que acontecem por acaso e por uma sucessão causal imprevisível, mesmo que já fossem um tanto quanto frequentes e um pouco previsíveis. Mas novamente ninguém se importou muito. Cada colaborador estava focado em sua meta de produção e em não negligenciar seus deveres frente às máquinas que não cessavam. E nos poucos casos em que os acidentados resolveram processar a corporação, uma combinação de justiça lenta, ótimos advogados e juízes simpatizantes produziu parcas indenizações. Afinal, todos deveriam fazer sacrifícios em época de crise.
FIM.
Olegario da Costa Maya Neto
Ps. Isso é o que aconteceu nessa fábrica fictícia chamada "Brasil". Os direitos foram retirados, um por um, sem que ninguém se preocupasse muito com isso. E para reduzir custos e aumentar o lucro do Capital, os trabalhadores deram seu sangue...literalmente em alguns casos. Não podemos deixar que o mesmo aconteça no país chamado Brasil.
Aos meus amigos administradores, reitero a minha confiança de que existem ainda profissionais com perspectiva e ação crítica que não cairão em semelhantes falácias.