Amanda

Os ponteiros do relógio estavam custando muito a se movimentarem, o ponteiro grande estava quase no doze e o pequeno estava quase no nove. Faltavam poucos minutos para as nove da manhã e Amanda estava se sentindo impaciente e esquisita, sentada em uma das muitas cadeiras acolchoadas da recepção do consultório do Dr. Lacerda. Seus pés estavam firmes no assoalho, firmes demais para o gosto de Amanda, ela gostaria que eles afundassem como em uma nuvem, ou numa gelatina.

Amanda não era uma moça como as outras, já havia completado vinte e nove anos e há quinze anos frequentava regularmente o consultório do Dr. Lacerda, um renomado psiquiatra. Tudo começou lentamente, logo que completou quinze anos de idade, na flor da adolescência, um dia começou a sentir que seu corpo era como um balão cheio de gás, como se ela fosse sair voando a qualquer momento. O incômodo era tanto que chegou a se furar com uma agulha para ver se esvaziava e voltava ao normal. Quando só um pouco de sangue, quente e vermelho, saiu do furinho que a agulha fizera, ela ficou muito encabulada, pois tinha certeza que iria vazar todo o gás.

Agora olhava incessantemente no relógio, sacudindo a perna esquerda lentamente, tentava não pensar que o chão sob seus pés era firme demais. Firme demais. Olhou em volta e notou, pela primeira vez, que havia uma garota sentada no outro extremo da sala. Seus olhos a observaram atentamente, e um mal estar profundo se apoderou dela ao notar que a garota estava de chinelos. De chinelos. Desviou o olhar rapidamente e não pode impedir os pensamentos que encheram sua mente. Pés eram indecentes, não deveriam ser mostrados em público. Como a garota não sentia isso? Olhou seus próprios pés, calçados com duas meias, uma fina, uma grossa, e protegidos por grossos sapatos de couro, no estilo antigo, com cadarços, que cobria todo o pé.

- Amanda, é a sua vez. O Dr. Lacerda vai te atender agora. – Disse a recepcionista, loura e esbelta, com sorriso franco e muito tato para lidar com os pacientes.

- Ela está de chinelos! – Cochichou com a recepcionista.

- Não ligue para isso querida, ela não sabia, mas vou contar a ela. Fique sossegada. – Disse empurrando levemente a paciente até a porta do consultório.

Ao sair do prédio, Amanda ainda pensava nos pés da garota desconhecida, nem conseguira falar com o doutor tudo o que queria, não conseguia falar de mais nada. O doutor foi compreensivo, mas não deixou de falar que essa obsessão fazia parte da sua doença.

Sua doença, pensou, não se sentia realmente doente, só um pouco esquisita, um pouco incompreendida, solitária, sem amigos, mas doente não. Caminhou contando os postes que encontrava, mas só contando, não tocava em nada na rua, pensava que poderia se contaminar com os germes ao menor contato. Contou trinta e sete postes até a sua casa, este número não mudava nunca, é claro, mas ela sempre se surpreendia, não gostava de coisas sólidas e imutáveis. Gostava de coisas flexíveis, mutáveis, maleáveis. Assim como ela mesma, que estava em constante mudança.

Chegou em casa, onde morava com sua irmã mais velha, Ingrid, que no começo de sua “doença” achou-se na obrigação de cuidar dela como se fosse sua mãe ou sua terapeuta. Amanda não gostou a princípio, queria independência, como toda jovem, mas isso foi impossível. Só conseguiu sair da casa de seus pais depois que Ingrid decidiu que cuidaria dela e levou-a para seu apartamento, onde tinha um pouco mais de independência do que na casa de sua mãe. Mas só um pouco.

- Como foi a consulta? – Perguntou Ingrid, da cozinha, assim que ouviu a porta da sala se abrindo.

- Foi boa, vi uma moça de chinelo.

- Ah não Amanda, aposto que você importunou o doutor com isso a consulta inteira, não foi?

Amanda só ouvia a voz de sua irmã e notou certa exasperação no tom da voz.

- Não pude evitar. – Disse com relutância, indo para seu quarto no fim do corredor.

Quando fechou a porta atrás de si, sentiu-se em segurança. Sentou-se em sua cama, respirou profundamente várias vezes e tentou pensar em coelhos. Coelhos sempre a acalmavam, a maciez, a brancura de seus pelos, o vermelho de seus olhos. Olhou em volta, para sua coleção de dezenas de coelhos de pelúcia, de vários tamanhos e formas, mas ainda não conseguia tirar a imagem dos pés da menina, rosados, com veias azuladas aparentes, os dedos de tamanhos irregulares, as unhas mal cuidadas e um pouco sujas... Ahhh! Sua mente estava perigosamente em transe, estava se sentindo leve e perdia o controle sobre seus pensamentos. Não!

- Amanda! Eu sabia que isso ia acontecer, acorda! – Ingrid chacoalhava Amanda com força, dava tapinhas em seu rosto, mas nada parecia ajudar. Foi até a cozinha correndo e voltou com um spray cheio de água, que borrifou no rosto de Amanda.

- O que foi? – Perguntou como que acordando de um sono profundo.

- Deu branco em você de novo, eu sabia que isso ia acontecer, malditos pés descalços. Sorte que estranhei seu silêncio e vim logo te acordar, só uma borrifada bastou. Vamos, vou te levar pra dar um passeio, esquecer isso, vamos logo.

- Não quero sair, estou cansada. Eu vou ler um livro, vai ficar tudo bem, por favor??

- Tudo bem, mas venha pra sala, onde eu possa te ver.

Continua...

Priscila Pereira
Enviado por Priscila Pereira em 07/04/2015
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