Jack Bloodie

01

Nessa época eu morava num quartinho úmido, de pouco mais de dois metros quadrados, próximo à rodoviária. Os freqüentadores mais antigos do Bar e Restaurante Madureira me contaram que toda aquela região: Carlos Prates, Lagoinha, Bonfim, Guaicurus e ainda um pedaço da Floresta, formavam a zona boêmia de Beaga.

Hoje existem elevados separando estes lugares. Para as putas restou apenas a Guaicurus e o Bonfim. Mais ou menos um terço da área que antes ocupavam. Isso não quer dizer que o progresso tenha diminuído a prostituição na cidade. Pelo contrário, até aumentou. Afinal, além de continuarem no que restou da zona boêmia, elas ganharam casas de massagem, puteiros em bairros e o alto da Afonso Pena. Além dos anúncios no jornal Estado de Minas; entre outras formas de se exercer a profissão mais antiga do mundo.

Pois é, eu morava nesse muquifo e eram tempos difíceis. Estava separado das minhas duas mulheres - uma de cada vez. O salário era insuficiente para as despesas com as pensões das crianças, com o quarto e com a minha alimentação. Eu driblava essas situações vendendo os vales-transporte e os tíquetes restaurante. Foi nessa época que, muito a contra gosto, tive que trocar a cerveja pelo vinho Chapinha. Mas fazer o quê né?

02

Aos sábados eu costumava ficar com meu filho no clube. Quando me sobrava algum dinheiro eu tomava umas Millers por lá.

Foi o que aconteceu naquele. Cheguei do clube, no final da tarde, exausto e molhado. Quando pelejava com a chave no portão, fui abordado por um homenzinho negro, barrigudinho, sorriso de pidão, vestindo um terno sujo e amarrotado.

- Meu amigo, desculpe te incomodar, é que eu cheguei agora de Brasilia e estou procurando o Márcio. Ele é músico, trompetista. Você o conhece?

- Conheço sim - falei - ele mora no outro bloco, logo ali ó - apontei.

A maioria dos moradores daqueles cortiços são artistas, prostitutas e travestis. Eu me encontro, é claro, na primeira opção; embora diletante.

Na verdade aquele semi-anão estava era me jogando uma conversa para ver se me tirava algum. Veio com um papo furado de que era professor de piano e de canto lá em Brasilia e que o Márcio iria lhe arranjar lugar pra dar aula aqui.

- Como eu te disse meu amigo, o Márcio que me falou pra vir pra cá sabe? falei pra ele que eu não tinha grana, mas ele disse que me emprestaria algum até eu me arranjar. Tô aqui desde o meio dia e ele não apareceu, - não comi nada até agora.

Tinha malandragem ali, eu sabia. Mas toda essa conversa de músico amoleceu meu coração. Olhei pra ele de cima em baixo com aquela malinha molambenta e aquele terno preto precário, Parecia um pastor dessas Igrejas que se instalam em cômodos mais apropriados pra buteco.

Primeiro fui no bloco onde morava o Márcio e o chamei. Realmente não estava. Depois fui ter com o pastor-músico:

- Então você está com fome né?

Fez uma cara de cachorro pidão como resposta.

- Vamos ali no Madureira que eu te pago um peéfe.

Percebi que ele ficou um pouco decepcionado. Com certeza esperava que eu lhe desse dinheiro. Mas acabou me seguindo.

03

Uma das vantagens do Madureira é que se você chegar lá a qualquer hora do dia ou da noite, sempre tem comida boa. Sentamos e eu pedi também um pra mim e uma cerveja. Ficamos conversando e logo percebi que o pastor-anão era mais falso que nota três e trinta e oito. Não conhecia patavinas de música. Mas não fiquei chateado. É bom fazer um pouco de caridade de vez em quando; mesmo que seja pra malandro. Além do mais eu estava com um pouco de dinheiro - o que era raro.

Estava passando um jogo de futebol na tevê de quatorze polegadas pendurada na parede. Romário sofreu e perdeu um pênalti. Quase todos no bar reclamaram dele. Dois minutos depois ele fez um gol de cabeça. A maioria permaneceu calada. Uns poucos elogiaram. É mais fácil decepcionar do que agradar.

Muitas garrafas de cerveja foram abertas e eu comecei a ficar tonto. Foi aí que percebi aquele casal estranho numa mesa próxima. Notei que o cara era viado. A menina muito magra, branca e pálida, possuía pouca beleza e quase nenhuma curva - o que é pior. Eu só a desejei por conta do meu estado de embriagues e por ela ser a única mulher ali. Em terra de cego quem tem um olho é Rei. Tudo é clichê...

04

Logo juntamos as mesas. Com beijinhos no rosto nos apresentamos. O pastor sentiu-se deslocado, me agradeceu e foi embora. Ela era a Clara e ele o Quelton. Contaram que estavam à pouco tempo em Beagá e que vinham da mesma cidade do interior (não me lembro do nome). Moravam pertinho dali, num conjunto de apartamentos na rua de cima. Eu conhecia.

Continuamos esvaziando as garrafas de cerveja. Eu estava bem mais embriagado que eles. Havia começado antes, no clube, e bebia mais rápido também.

Passei a cantar Clara descaradamente. Ela apenas ria e pouco falava. Quelton é que falava mais que maritaca. Era uma situação insólita: eu querendo comer a Clara e o Quelton me secando. Foi ele quem teve a idéia de irmos para o apartamento deles. Na hora não percebi, mas Clara não gostou muito. Eu estava bêbado demais para saber o que eu queria. Fui.

05

Era um apartamento de bicha. Parecia um barracão de escola de samba. Cheio de plumas e decorado com cores berrantes - parecendo fotografia de filme do Almodovar. Um tremendo mau gosto. Senti náuseas. Queria ir embora, mas não tinha condições. Além do mais, apareceu o Jack - uma garrafa fechadinha de Jack Daniels.

Quelton me serviu uma generosa dose com gelo; como eu pedi. Era um daqueles copos largos que te fazem beber mais do que quer.

Não demorou muito e saí do ar.

06

Fui acordando no melhor estilo: "okotô? – dokovi? – pokovô?. Uma luz azul fraca penetrava no meu cérebro. Fiquei confuso. Minha cabeça latejava. Tive dificuldades de olhar ao redor. Estava deitado nu numa cama redonda.

Era o quarto do Quelton. Ele estava na minha frente só de cueca.

- Finalmente acordou em Alex - disse cheio de trejeitos.

Despertei de vez e tive consciência do que estava acontecendo. Olhei por debaixo da fina colcha a minha nudez murcha. Fitei aquele filho da puta com nojo. Levantei gritando:

- Cadê as minhas roupas?

- Calma Alex, estão aqui - falou apanhando meu short de nylon e minha camiseta.

Peguei e me vesti por baixo da colcha. Achei meu tênis no chão e o calcei.

- Cadê minha pochete?

Ele apontou para a sala. Fui até lá e a encontrei em cima do sofá. Abri e contei o dinheiro. Tudo certo. Mas faltava alguma coisa.

- Cadê a porra da minha chave?

- Sei lá Alex, nem toquei na sua pochete.

Eu sabia que era mentira, mas estava tão enojado que não queria nem olhar aquele sujeito. Comecei a revirar tudo; a estante, as escrivaninhas, gavetas e tudo o mais. Fiz bastante barulho de propósito.

- Calma Alex, assim você vai acordar os vizinhos. Já são mais de quatro horas da manhã.

- Que se danem os vizinhos! - gritei - eu quero essa porra de chave agora, senão eu vou quebrar tudo!

07

Foi aí que uma porta se abriu e do quarto saiu um fantasma.

- Quê que tá acontecendo aqui?

Era a Clara metida numa horrenda e longuíssima camisola branca. Olhei assustado. "Eu queria comer aquilo? Arrh!".

- Essa porra dessa bicha pegou minha chave.

Ela o olhou interrogativamente. Ele dissimulou como só as bichas conseguem.

- Vê se eu ia fazer uma coisa dessas Clarinha. Ele é que perdeu a chave e tá colocando a culpa em mim.

Clara ficou atônita e eu cada vez mais irado.

- Olha aqui - falei com o dedo em riste - eu não sei qual é o esquema de vocês, eu sei é que essa merda dessa bicha se aproveitou da minha bebedeira e eu acordei nu na cama dele. Já tenho motivos suficientes pra estourar a cara desse viado. - Eu só quero a minha chave pra poder ir embora.

- Eu fui dormir e vocês ficaram bebendo aqui na sala - ela falou - não sei de nada.

- Em você eu acredito - falei me acalmando um pouco - mas nele não.

Clara olhou-o novamente, mostrando censura.

- Que isso Clarinha, Vê se eu ia fazer isso. O Alex é que é um ingrato. Veio aqui e bebeu quase todo nosso uísque, se divertiu e ainda fica me acusando. Ele perdeu a chave e fica botando a culpa em mim.

Aquele "se divertiu" me tirou do sério. Avancei nele. Ela se pôs entre nós e me impediu.

- Para com isso Alex !

08

Eu estava alterado, mas sabia que ela não tinha culpa. Cobri minha cabeça com as mãos e procurei me acalmar.

Retomei minha busca pelas chaves. Só que desta vez de forma mais truculenta. Arredei móveis, derrubei coisas. Eu queria mesmo fazer barulho - incomodá-los.

Ficaram desesperados, andavam atrás de mim e apanhavam tudo o que eu jogava no chão. Ela estava bem assustada, ele tentava me dissuadir.

- Olha Alex, já está tarde, nesse estado você não vai achar nada. Dorme aqui e amanhã você procura com calma.

Nessa hora eu entendi qual era a da bicha - falei:

- Viu Clara, entendeu a artimanha do seu querido amiguinho. Ele escondeu a chave para que eu durma aqui.

Ela parecia dividida. Mas pendia para o lado dele. Por isso continuei com a busca.

Atrás de uma das almofadas do sofá encontrei um bolo de notas. Era muito dinheiro. Quando viu, Quelton entrou em pânico.

- Clarinha, ele quer nos roubar! - ele que nos roubar!

Emputeci ainda mais e joguei o maço que estourou no peito dele e se desmanchou esparramando as notas de cinqüenta pelo tapete da sala.

- Não quero saber da porra do seu dinheiro, só quero saber da minha chave pra poder ir embora dessa merda.

Clara estava cada vez mais assustada e decidiu fazer uma tentativa:

- Quelton, se você estiver com as chaves dele, devolve por favor, deixa ele ir embora - falou em prantos.

Mas o viadinho continuou negando e fez até juramento pela mainzinha dele.

09

Ficamos nessa lengalenga ainda por um tempo. Ela: desesperada, não sabendo em quem acreditar. Ele: com esperanças de que eu desistisse e fosse dormir. Eu: jogando tudo para o alto e fazendo muito barulho.

Parei de repente a busca. Escorei na mesa com as duas mãos. Fitei os dois copos vazios sobre ela. Quelton percebendo que fiquei um tempo imóvel, deve ter imaginado que eu estava esmorecendo. Aproximou-se por trás e veio com aquela ladainha tentando me convencer a dormir lá. Só que dessa vez ele falava segurando levemente o meu braço; numa tentativa de carinho.

Desta vez meu sangue quase chegou ao estado de ebulição. Não tive dúvida. Peguei um dos copos na mesa, segurei-o pelo fundo e o quebrei na quina. Como que esculpida, surgiu uma ameaçadora ponta. Virei-me com reflexos sobriamente refeitos pela raiva e, numa fração de segundos, estava com a mão esquerda na nuca dele e a direita segurando o copo quebrado com a ponta encostada em seu pescoço. Ele gelou. Clara se desesperou implorando para que eu o solta-se. Eu estava impassível. Falei em tom calmo, mas seriamente ameaçador:

- Pega essa chave agora ou eu vou atravessar sua garganta.

Ele não conseguia falar. Fazia gestos querendo dizer que não sabia onde estava a chave. Apertei ainda mais a ponta do caco; saiu um filete de sangue do seu pescoço.

- Se você não sabe onde está, então vai morrer por não saber, sua bicha filha da puta - blefei - pode ter certeza, você vai morrer! - falei olhando nos seus olhos.

Ele então apontou para a estante. Levei-o até lá. Tirou um livro do alto. Eu já tinha mexido ali sem encontrar nada. O livro, que tinha no seu interior um buraco entre as páginas, abrigava o meu molho de chaves e umas buchas de maconha - como se para isso tivesse sido feito.

10

Clara parecia não acreditar. A bicha ficou chorando no tapete: "Ele ia me matar! ele ia me matar!". Joguei o resto do copo na parede, apanhei as chaves e fui saindo. Clara me chamou:

- Alex, espera - veio ao meu encontro na porta - me desculpe, estou tão envergonhada.

- Você não tem culpa, ele sabe mentir. Você é uma boa pessoa, se afaste desse cara, vai por mim, isso é um merda e não tem concerto não, vai aprontar outras vezes, esse tipo de gente não tem respeito por ninguém. Poderia ter acontecido uma tragédia aqui e você estaria envolvida sem ter culpa alguma. Pense bem - atravessei a porta - Tiau!

- Tiau! - ela respondeu de cabeça baixa.

Já amanhecia, andei pela rua deserta, em cinco minutos cheguei no meu úmido quartinho. Nunca o amei tanto.

Só quando fui tomar banho é que percebi que minha mão direita sangrava.

Fernando Tamietti
Enviado por Fernando Tamietti em 08/06/2007
Código do texto: T518719
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