Cariño
Aperto-me entre a mansarda e a trave mestra do telhado. Chega-se aqui subindo escadas desde a margem do rio, de que só tenho uma breve nesga azul, até ao sótão do prédio, três andares sobre a rua entalada entre o casario e outras escadas. É o número sete. Fiquei por ser barato, íntimo, quase escondido. Não devo trazer ninguém por recomendação expressa da senhoria e nunca, para além da solidão, tinha estado, nesta parte de casa, alguém comigo. Quando subimos, descalços para a não acordar, sabias os truques da escada. Pisávamos como se as tábuas tivessem de ser cuidadosamente afagadas com os pés. Acendia o isqueiro para veres o lance seguinte e o desenho do corrimão, caprichoso, como se de uma longa cobra se tratasse. O quarto era em frente da porta de entrada e o perigo o espaço de corredor que tínhamos de cruzar para chegar. Contados pelo meu relógio gastámos quase cinco longos minutos a subir e estávamos tensos e suados. Apaguei a luz para vermos a cidade que, àquela hora, era calma e bonita. Abraçados, ainda sobejavam uns centímetros de janela. Em menos de nada estávamos nus e era como se sempre tivéssemos sido íntimos. Guardei de ti uma história triste. Fugias do desemprego e dos assédios do teu padrasto. Lisboa era o fim da tua linha. Ou conseguias sobreviver na capital ou irias para Espanha com outras mulheres. Já sabias das desculpas para a família e do que irias fazer entre a companhia aos clientes e o chá a fingir whisky com gelo. Ainda era escuro quando, com um beijo nos despedimos. Passaram meses sem que desses sinal de vida. Esqueci-te. Dói-me que este postal, com carimbo de Sevilha, me traga uma Macarena lacrimosa e duas frases de um amor de plástico. Nele sou o teu cariño.