José Maria e Maria José

Eles sempre estiveram muito perto um do outro. Nasceram no mesmo dia, no mesmo hospital, sempre moraram na mesma rua, cresceram juntos, fizeram as primeiras letras na mesma escola. Passaram no vestibular para Direito, na mesma Faculdade e estudavam as mesmas matérias, para ficarem juntos nas mesmas salas de aula.

Nada foi coincidência, apenas capricho do destino. O nome sim foi uma verdadeira coincidência; os pais de Maria José se chamavam José e Maria. No caso de José Maria, os avós é que foram batizados com os nomes de José e Maria. Não houve combinação para a escolha dos nomes das crianças, nenhuma das duas famílias havia se manifestado, com antecedência, a escolha dessa combinação. Os batizados também não foram realizados na mesma Igreja nem no mesmo dia. Os pais ainda não se conheciam, vizinhos recém introduzidos naquele bairro, somente depois de quase dois anos, quando as crianças foram levadas para as creches é que tomaram ciência das coincidências. À custa disso, as famílias se tornaram amigas, moravam perto uma da outra, o que favoreceu a aproximação de Maria José e José Maria.

Os pais se regozijavam pela amizade entre seus filhos. Estavam sempre juntos, um cooperando com o outro, seja na escola, nos afazeres escolares ou domésticos. Nada os separava. Até os quinze anos de idade eles ainda não tinham despertado para o sexo, viviam como dois irmãos. Foi quando apareceu Carlos Alberto, o CA, moço bonito, conquistador e mau caráter. Filho de família rica, nada o impedia que cobiçasse e obtivesse aquilo que pretendesse possuir. José Maria, o Zeca, conhecia o caráter dessa pessoa.

Sexta-feira, dia do aniversário de Maria José, cognominada de Zezé e, consequentemente, de José Maria. Um baile de debutante foi organizado pelos familiares de Zezé. O début é rito de passagem ao qual as jovens são submetidas, geralmente sendo realizado quando elas completam quinze anos de idade. Como iniciante ou estreante, as adolescentes são oficialmente apresentadas à sociedade, começando assim nova fase da vida, a fase da permissão para namorar.

A presença de Carlos Alberto, colega de colégio de Zezé e Zeca deixou este último muito cabreiro. Ele ouvira que CA iria ao baile de Zezé “só para pegar aquela menina linda e gostosa.” Zeca sabia da inocência de Zezé e também da fama de tirador de virgindade, do CA. Bateu-lhe uma ciumeira danada; aquilo não aconteceria com Zezé. Era preciso armar um plano para impedir que CA chegasse próximo de Zezé. Precisaria da ajuda de um amigo, de um amigo que fosse de confiança de verdade, pois muitos, na hora h, se debandariam para o lado do garoto rico.

Vermelho de raiva qual semente de urucum, Zeca foi conversar e tentar convencer o Clerisvaldo, amigo de longa data, a executar o seu plano de arrasar com aquele loiro bostalento, aquele branquelo fedido metido a besta. O amigo, mesmo receoso das consequências, pois já tivera vários entreveros com CA no colégio, concordou em participar da trama, para desmoralizar o desafeto. Tudo combinado era só esperar a noite da sexta-feira.

O baile transcorria normalmente, todos os quinze pares que dançariam a valsa da meia-noite estavam elegantemente vestidos. As moças em deslumbrante vestido rosa, rodado, de alcinha imitando tomara que caia, bordado em paetê e cristais. Os homens, terno branco, acompanhado de colete, gravata, sapatos e meias, tudo branco.

Todos conversavam animadamente, muitos dos presentes eram amigos entre si, quando não, pelo menos vizinhos. O assunto era um só, o deslumbramento da festa. O pai de Maria José, remediado comerciante de secos e molhados, guardara dinheiro para o grande evento: o aniversário da única filha. Era principalmente o sonho da mãe de Zezé, que nunca tivera direito a uma festa de debutante, seus pais não podiam bancar esse gasto todo. Na festa da filha o seu sonho estava se realizando.

Carlos Alberto era um dos pajens. Sua dama seria Carolina, garota bonita, mas de peso acima da média das garotas de sua idade. CA não se importou com isso, seu objetivo era poder dançar com Zezé e lhe fazer a corte. Ele tinha certeza que ela cederia, era o que acontecia com todas as garotas da cidade.

Meia-noite, hora da valsa. Todos a postos para receber Zezé, que segundo sua mãe estava linda e deslumbrante. As damas e cavalheiros faziam uma meia-lua no salão já na penumbra. Carolina, sua partner, pediu licença ao CA, para ir até ao toalete, isso fazia parte do plano de Zeca. CA não se importou com o afastamento da adolescente. Conjecturou ele que ela fora retocar a maquiagem. O interesse dele era mesmo apreciar a entrada de Zezé e se deliciar com os seus luxuriantes sonhos de tê-la em seus braços. Quando Carolina voltou, trouxe consigo em uma de suas mãos uma bisnaga, que não foi notada por CA.

O pai da debutante entrou no salão, entregou a filha para o seu par, o Zeca e os acordes da valsa Wiener Bonbons, de Johann Strauss II, Op.307 se fizeram ouvir por todos os presentes. Zezé e Zeca iniciaram a dança, bailavam magistralmente, pois passaram um mês ensaiando, por ordem da mãe da debutante, ela queria que saísse tudo perfeito. Cinco minutos depois, aos pares, os dançarinos tomaram seus lugares no centro do salão e ao ouvirem o comando da mãe da dona da festa, também começaram a dançar.

— Uma coisa linda, tudo perfeito, exclamou exacerbadamente dona Maria, feliz da vida.

Seu José e a esposa não cabiam em si de contentes. Estava valendo todo o esforço por eles desprendido. A filha estava radiantemente alegre, os pais estavam agradecidos, todos os presentes estavam contentes e deslumbrados.

— Nunca aquela cidade tinha presenciado uma festa igual àquela, enfatizou alguém.

Minutos antes do término da valsa, Carolina pediu para CA se afastar um pouco dela para dançarem separados, uma ousadia. O garoto loiro, que gostava de se exibir não se fez de rogado, passou a fazer piruetas em frente à gordinha feia, como CA chamava Carolina. Tão entusiasmado se encontrava o garoto, que não percebeu que a garota despejava todo o conteúdo vermelho da bisnaga que trazia consigo. Bem sobre a abertura frontal da braga, braguilha. Os presentes à festa nada perceberam, o salão estava completamente na penumbra. Carolina se afastou disfarçadamente e o garoto continuou rodopiando no salão em grande euforia. Parecia que estava impulsionado por efeito de álcool. Mesmo depois de a valsa parar e todos os pares se retirarem do salão, o rapaz continuou dançando. As luzes foram acesas, os presentes espantados passaram a tomar conhecimento daquela figura dantesca que enquanto dançava, vociferava, chorava e ria.

A orquestra parou, todos pararam, dona Maria, ao desespero, pedia para alguém tirar aquele garoto do meio do salão. Ele não iria estragar a festa dela, também vociferava. Foi aí que CA percebeu o que estava acontecendo, olhou para a sua calça branca toda manchada, parecia sangue. Pensou que ele tivesse feito alguma coisa com Carolina e que o sangue seria dela. Procurou-a olhando para todos os lados do salão e não a encontrou. Com vergonha da humilhação que estava passando, correu para a saída do clube e nunca mais ninguém ouviu falar do CA. Zezé e Zeca, depois desse episódio ficaram mais unidos, se formaram e se casaram. Hoje vivem na capital. Ela nunca ficou sabendo que toda aquela armação partira dele.

Gilberto Carvalho Pereira

Fortaleza, 20 de março de 2015

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 28/03/2015
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