O Suicídio do Funcionário do Mês

O despertador começou a cantar bem alto e vibrante por volta das sete da manhã. O Sol já havia nascido, mas não era nada mais que um recém-nascido, estava ameno, tímido, iluminava, porém, não esquentava. Estávamos no outono e o ar que soprava da Serra do Mar já vinha frio.

Wistowski levantou da cama com o pé direito, se espreguiçou, e desligou o despertador. Todos odiariam aquele despertador, mas não ele, Wistowski gostava de acordar cedo e acordar acelerado, gostava do barulho da cidade, gostava de estar ligado ao ruído, ligado a fumaça e à agitação. Foi ao banheiro, deixou a pia encher um pouco, fez a barba com seu barbeador de três lâminas duplamente lubrificado e com o creme de barbear mentolado que deixava uma sensação de frescor na pele, era um creme especial, para pessoas com a pele sensível, se usasse os cremes e barbeadores convencionais os poros de Wistowski ficavam irritados e cheios de bolinhas vermelhas, em especial no pescoço e nas bochechas. Escovou os dentes, penteou o cabelo perfeitamente, de forma que nenhum fio ficasse rebelde ou desalinhado, mas verdade seja dita: Já era hora de cortar. Abriu o guarda-roupa e selecionou suas vestes do dia: Camisa social branca, manga longa, por dentro da calça preta, sapatos pretos, eram peças simples e baratas, compradas em promoções e brechós, porém, Wistowski tinha uma fé inabalável em seu futuro e muito em breve, ele sabia que estaria comprando roupas de grife nas lojas mais caras do shopping, bastava ter um pouco mais de paciência. Humilhe-se hoje, exalte-se amanhã.

Tomou café, comeu duas torradas com manteiga e saiu em direção ao ponto de ônibus. Wistowski odeia o ponto de ônibus, odeia andar de ônibus, odeia o transporte público. O transporte público esfrega na cara dele que ele ainda é pobre (algo inadmissível), mas ele respira fundo e encara, por hora tem que encarar. Sempre antes de chegar no ponto, perde alguns segundos contemplando o carro de seu vizinho, um gerente de banco, um sedã luxuoso, comprido, largo, motor potente, pintura perolada, bancos de couro, painel de madeira nobre... Um sonho, por hora.

Chegou ao trabalho por volta das dez. Ele sempre chega duas horas antes do almoço para fazer uma média com seus supervisores. Por enquanto, Wistowski é um dos muitos operadores de suporte técnico contratados pela Alerta Call Centers. Operador de suporte técnico é o nome dado ao disfarce de sua verdadeira profissão: teleoperador. Logo encontrou os supervisores da manhã na área de fumantes, foi até eles. Detestava a grande maioria deles, eram babacas inferiores, como eles conseguiram o que ele não havia conseguido ainda? Era só uma questão de tempo, sim, Wistowski sabia que era mais talentoso que qualquer um deles, e irá provar isso, irá vê-los de cima, mas por enquanto ele ainda precisa desse tipo de gente, são meros contatos e contatos facilitam o caminho do sucesso, era o que todos os livros e programas de televisão diziam sobre o sucesso profissional.

Por volta da meio dia, sua namorada saiu durante a pausa para almoçar. Ela veste-se como uma rebelde, uma punk, mas é apenas estilo, assim como os piercings e as tatuagens, ela é alta, tem a bunda grande, porém flácida e coxas igualmente grandes e flácidas, os seios pareciam apenas medianos e até pequenos, mas de perto eram grandes, bem grandes. Ela se chama Renata e é bastante jovem, tem não mais que dezoito anos.

"Aí vem ela, meu troféu."

Renata é o sonho de consumo de todos os metaleiros e lésbicas daquele lugar. Seu estilo chamativo e seu jeito submisso é bastante atraente para a maioria. Ela é considerada sensual, ainda que muitas das garotas do Call Center sejam mais bonitas, ela é erótica. Wistowski gosta de beijá-la, principalmente em público, faz ele se sentir vencedor, acima de todos aqueles que cobiçam sua garota. Eles almoçam juntos, dão uns pegas no beco e já é hora dele começar o expediente e dela retornar, na verdade, ainda não é hora, mas ele gosta de fazer horas extras (afinal, isso demonstra todo seu interesse pela profissão).

Ele é o operador mais exemplar de toda operação e já é o braço direito de seu supervisor. Já foi parabenizado pelas coordenadoras do Call Center e ocasionalmente elas pedem favores ao supervisor de Wistowski, que repassa para ele os pedidos e fica com a glória. Não há nada que se possa fazer nessa situação, é preciso aceitar, é melhor ter a confiança do supervisor do que não ter nada. Tudo que resta para Wistowski fazer é dar tudo de si, dar o melhor de si para mostrar empenho.

Wistowski é um ávido leitor de guias profissionais, aqueles que descrevem os hábitos dos milionários, suas práticas, valores e costumes e aqueles que tentam moldar seus leitores em trabalhadores ideais, esforçados e compenetrados.

Muitos entre os outros operadores sentiam inveja e raiva dele (ou um misto das duas coisas), acusavam-no de puxa-saco, de inescrupuloso e esnobe. Bobagem! Alguns nascem com estrela, outros, culpam os outros por não se dedicarem e não se esforçarem para ser alguém na vida. Era engraçado de certa forma, era divertido! Toda aquela inveja e desprezo canalizados... Fazia bem, fazia muito bem para o ego. Era tudo que um homem precisava para saber que está vencendo o jogo!

Passadas algumas horas, ele ainda estava praticamente na metade de seu expediente aumentado, finalmente o relógio anunciava sua pausa alimentação. Vinte minutos de descanso. Saiu do prédio, e na calçada, junto a outros ambiciosos e promissores operadores, acendeu um cigarro. Queria muito uma cerveja, mas jamais beberia durante o expediente, ia contra tudo que ele acreditava, era simplesmente errado. Do outro lado da rua, um cara barbudo, com roupas velhas que mais parecem pijamas está tentando atravessar. É Vince. Wistowski já ouviu falar de Vince: É um preguiçoso, que vive atrasado, sai mais cedo, mata trabalho para vadiar com uma garota de outro setor (uma garota muito bonita diga-se de passagem) e esta sempre com péssima aparência: Se veste mal, não faz a barba, é um milagre que escove os dentes, calvo, e além de tudo bebe como um bebum. De todos os operadores, personifica aquilo que Wistowski mais odeia, é o tipo de homem que nunca será alguém na vida. Wistowski, que conversava com um amigo, comentou:

- Eu odeio esse filho da puta!

- Sim - respondeu seu amigo - ele é mesmo desprezível. Me dá nojo.

- Olha o jeito que anda, como ele sorri, todo desleixado e despreocupado. Como uma garota pode ficar com esse perdedor, quê que ele tem?

- Porra nenhuma eu aposto - responde o outro rapaz ambicioso. Como eles ainda mantém esse cara empregado? Afinal, como um merda desses consegue um emprego?

- Ele fica com aquela branquinha de outro setor, linda pra caralho.

- Ela é, sei quem é, gatíssima.

- Uma gostosa daquelas devia ficar comigo, eu sou o cara certo para ela - diz Wistowski, sorrindo maliciosamente.

- Mas você já fica com a Renata, cara! Deixa as outras pra nós.

- Vou pensar no seu caso, mas cara, te digo, tenho certeza que eu ou você conseguem ficar com ela, somos muito melhores que esse projeto de homem.

Vince se aproxima da dupla.

- Boa tarde cavalheiros! - ele diz.

- Boa tarde - responde Wistowski.

- Boa tarde - responde o outro rapaz.

Vince segue escada acima e entra no prédio.

- Que otário! Vai ficar sem mulher! - diz Wistowski.

- Você é um filho da puta Wistowski. Um dos maiores filhos da puta que já conheci.

- Você me censura porque não conseguiria ficar com ela. Não tem o que ela precisa não é? É o seu pau? É fino e pequeno demais pra você ser confiante? É?

- Me garanto com qualquer um, com você ou aquele vagabundo!

- Ainda que tenha o pau, você nunca vai ser nada. Eu sou o exemplo, eu sou o próximo da lista para ser promovido, virar supervisor. Depois disso, aquela branquelinha vai abrir as pernas fácil, fácil, e a Renata vai engolir seco pra não perder o meu aumento de salário.

- Quero só ver! Quero só ver...

Passados alguns dias, Wistowski continuava fazendo horas extras e favores para seus chefes, continuava mais e mais exemplar. Não tardou para ser eleito funcionário do mês e receber uma caneca personalizada com os dizeres "EU SOU UM OPERADOR NOTA CEM! O MELHOR ATENDIMENTO DA ALERTA", com uma carta impressa com elogios e cumprimentos e a assinatura da própria gerente do Call Center, da própria pessoa que mandava naquela porra toda. Por alguma bizarra razão, algo impensável aconteceu: Vince também ganhou a maldita caneca! Como era possível? Aquilo tinha ido longe demais, o filho da puta deveria aprender o lugar dele, só havia um jeito de humilhar aquele monte de coisa nenhuma: Roubar aquela coisinha linda que ele ficava.

A semana seguinte foi ainda mais corrida: Além da jornada estendida, ele participou de um processo seletivo para uma promoção: Uma vaga em um outro setor, mais tranquilo e que pagava mais. É apenas um pequeno consolo, mas passar naquele processo deixaria Wistowski mais perto do sonho de se tornar supervisor. As coisas estavam na mesma com Renata, é meio que uma relação de conveniência e aparência, não que ele seja gay, não, mas ela é apenas uma conquista, um troféu cujo sabor já não é mais tão doce. O troféu que ele queria agora era a garota que ficava com Vince. Wistowski aos poucos foi se aproximando dela, apesar da branquelinha manter certa distância, ele conseguiu fazer amizade, tudo correndo conforme o planejado, faltava apenas a conclusão. Mas, mais para o fim da semana, um amigo veio lhe contar algo estarrecedor:

- Ei Wistowski! Tá sabendo dá última?

- Não, não estou.

- É meio chato ter que te falar cara...

- Hum.

- É que você não passou naquele processo seletivo.

Impossível. Aquilo tinha de ser um engano, não podia ser verdade, ele era o operador exemplo, o melhor atendimento.

- E quem é que passou?

- Aquele seu amigo e o barbudo, um tal de Vince, sabe quem é?

O mundo pareceu perder as cores. Como é que aquele miserável que vive atrasado, que tira várias e longas pausas particulares e sai mais cedo pode ter passado e ele não? Agora é preciso tomar medidas drásticas! Wistowski foi até Didi, a garota que ficava com Vince e confrontou-a, era agora ou nunca! Estava tomado por uma insatisfação flamejante, uma fúria verdadeira, ainda que contida, o importante mesmo é mostrar quem é o melhor dos dois e colocar aquele barbudo em seu devido lugar. Durante sua última pausa descanso, foi falar com Didi.

- Não.

- Como assim Didi? Como não?

- Você namora.

- Mas eu não quero mais a Renata, eu quero só você.

- Posso ser sincera Wistowski? Eu não gosto de você.

- Como é?

- Isso mesmo. Eu não gosto do seu jeito e do seu papo. Só estava sendo gentil, educada.

- Mas eu sou melhor que aquele idiota que você fica em todos os aspectos! Aposto que trepo melhor que ele.

- Não diga essas coisas, não seja obsceno, se faço sexo ou não com ele não é problema seu! E sim, ele tem algo que você não tem.

- O quê?

- Carisma, ele me atrai, você não. Você é tedioso, não tem alma nenhuma, tudo que me oferece é sua ambição chata.

- Vai se foder você e esse papo de hippie de merda! Quanto você quer pra me dar essa buceta, sua putinha, quanto ele tá te pagando?

- Sai daqui, Wistowski, olha o que você está falando! Saia antes que eu chame o segurança! Me erra. Me deixa em paz!

Quando se virou, Renata estava atrás dele, com uma feição triste e enfurecida, parece que pode desabar em lágrimas e ao mesmo tempo pode decapitar alguém com uma faca de cozinha. Ela presenciou tudo.

- Parabéns Wistowski! Podia ao menos ter me dito!

- Renata, deixa eu explicar...

- Acabou. Trás minhas coisas segunda-feira.

- Coisas?

- As que ficaram na sua casa.

- Espera aí, Rê!

- Eu ouvi muito bem. Não vou te forçar a ficar comigo não.

- Mas...

- Não enche. Não vou ouvir.

Renata segue em frente, ainda decepcionada. É um pesadelo, só pode ser. Vince disputando uma vaga boa, demais para ele, perder duas mulheres no mesmo dia, não é possível, não pode ser! Vai acordar a qualquer momento... Mas não, não é um pesadelo, é tudo real.

Na saída daquele dia, o supervisor, percebendo a tristeza e desolação de Wistowski, que estava pela primeira vez perdido e sem rumo, coloca as mãos sobre seu ombro e diz:

- Não se preocupe rapaz, você é funcionário do mês até o fim dessa semana! É tempo de brilhar!

- Obrigado senhor!

- Você fez por merecer.

- Obrigado!

Chegando em casa, tudo ainda parecia horrível. Sentia uma espécie de tristeza e vazio dentro de si, o quê ele havia conquistado? Nada. Tudo que ele conquistou, ele conseguiu perder, e o que ele não perdeu, perdeu o valor. E tudo é culpa daquele vagabundo desleixado, sim! Aquele homem sem moral. Wistowski, apesar das ambições, conhece os bairros pobres e mais que isso, conhece a parte podre desses bairros. Foi até um contrabandista e comprou uma arma traficada do Paraguai, com cano raspado, carregada, o vendedor garantiu que funcionava. Havia sido testada recentemente...

Aquele filho da puta de pijama vai morrer, tinha que morrer. Perder para um derrotado? É humilhação demais, onde estavam aquelas verdades e lições passadas pelos livros de ajuda profissional e orientação financeira? Wistowski faltou no trabalho dois dias, criando coragem. Nada mais importava.

Na segunda-feira, ele chega as dez como de costume, e fica aguardando o tal garoto com alma, chegar. Durante essa longa espera (pois Vince sempre está atrasado), Wistowski se pergunta quanta alma vai restar no miserável quando ele descarregar seis balas naquele peito. Quanto carisma ele ainda vai ter quando estiver estirado no chão, numa possa de sangue?

Vencido pelo cansaço, Wistowski acabou por se distrair, sentado ali no beco. Só volta a si quando sente uma mão tocar seu ombro, a mão do próprio Vince, ali, com sua péssima aparência, fitando-o com uma estranha empatia.

- Você está bem, carinha? Tá com uma cara péssima.

Wistowski olha profundamente nos olhos dele. Eles estão completamente em paz, Vince parece não se preocupar com nada, com nenhuma meta, com nenhuma responsabilidade.

- Estou bem - responde Wistowski.

- Tem certeza?

- Me deixa! Não enche meu saco, porra!

- Tudo bem, vou te deixar em paz, se precisar...

- Não vou precisar! - Wistowski interrompe bruscamente - Especialmente de você!

Vince se afasta, sem contudo desfazer o olhar cheio de empatia. Wistowski saca o revolver, o tambor completamente carregado, as balas calibre .38 apenas aguardando a ordem, elas faziam todo sentido e de repente aquela baboseira toda sobre dinheiro, fama e sucesso significava qualquer coisa. É ação e reação, é justo: Ele puxa o gatilho e justiça é feita. Apontou, mirou na nuca, colocou o dedo no gatilho e... Meio que sem entender, abaixou a arma e guardou-a. Não conseguiu disparar. Vince dobrou a esquina, ileso, e ele estava ali, confuso com tudo aquilo. O quê está havendo? Melhor voltar para casa.

Quando chegou, fez o que costuma fazer sempre: Esquentou um prato de comida no microondas, abriu e esvaziou uma cerveja. Ligou a televisão, assistiu um pouco o telejornal, foi ao banheiro evacuar. Sentou-se na mesa da cozinha, colocou o revolver sobre ela e ficou ali olhando para ele enquanto o âncora seguia com as notícias. Algum cachorro latia na rua, carros passavam, o som das buzinas, o som da metrópole, o som da cidade das oportunidades. Colocou o cano de ferro frio, quase gélido, em sua própria têmpora (e por um momento o frio do metal trouxe algum conforto para aquilo tudo). Pensou na vida, sua própria vida, sobre o tempo e o que fez com ele, na felicidade, em Renata, em Vince, nos hábitos dos milionários, em seus sonhos despedaçados e... BANG!!!

~EPÍLOGO~

Alguns dias depois, duas garotas estão conversando na entrada do Alerta Call Center.

- Ei, você tá sabendo da última?

- Não, não tô não.

- Lembra daquele menino bombadinho, meio narigudo, que sempre se vestia de social?

- O Wistowski?

- É! Ele mesmo!

- Nossa, esse menino era um porre. A chatice em pessoa, um tédio! Não sei o que a Renata via nele. Quê que tem?

- Parece que ele se suicidou.

- Eita! Que horror! Como assim, se suicidou?

- Fazia uns dias que ele não vinha trabalhar, o supervisor ligava e ele não estava atendendo, e ele sempre atendeu...

- Sim, era um puxa-saco clássico. Te cumprimentava e logo em seguida te esfaqueava quando cê virava de costas. Era o tipo de cara que gostava de lamber as botas que o chutam.

- É. Aí o supervisor achou estranho e ligou para polícia. Os guardas acharam ele morto, deu um tiro na própria cabeça.

- Credo!

- O corpo já estava em decomposição, estava morto há dias!

- Que horror! Que horror! Ah... Nem me fala mais nada, vamos entrar.

- Tá.

- Te contei que hoje eu vou sair com um bofe?

- Quem?

- O Misael, aquele gatinho que trabalha no E-commerce!

- Mentira! Menina, mas ele parece ser tão sério.

- Ah ele é crente, por isso parece ser sério, mas é um cara fofo.

- Legal, vão aonde?

- Vamos no...

A conversa das duas segue. O cotidiano na Alerta Call Centers segue. Ninguém da empresa compareceu ao velório de caixão fechado de Wistowski, seu supervisor estava ocupado disciplinando os operadores medianos, e as coordenadoras não podiam prestar-lhe nenhuma homenagem. As horas passam, avançam, e assim acaba o dia, acaba a noite, e a história do ambicioso (e infeliz) trabalhador exemplar Wistowski, nosso herói enterrado a sete palmos do chão.

Vinícius Risério Custódio
Enviado por Vinícius Risério Custódio em 24/03/2015
Reeditado em 15/11/2015
Código do texto: T5182008
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