Dona Flora e suas práticas de cura
Na casa de dona Eleontina se dizia que ninguém acreditava em rezadeiras ou coisa que o valha. Mas, por coincidência ou não, dona Flora, uma senhora de mais de sessenta anos, estava sempre por lá quando o genro da dona da casa aparecia. Nessas horas era uma correria para esconder a rezadeira, pois o genro, muito católico não queria saber desse negócio de rezar em seus filhos.
A brincadeira de esconde-esconde durou até o genro chegar de surpresa na casa da sogra. As explicações foram muitas para justificar a presença de dona Flora, que não aparecia naquela casa só para rezar, ela também ia atrás de filar a bóia, que era farta e deliciosa, pois, preparada por dona Eleontina, tinha sabor melhor do que qualquer prato preparado por restaurantes da cidade de Itabuna e adjacências.
Dona Flora não sabia das exigências do genro da dona da casa, mas já desconfiava que aquele homem, sempre bem vestido e manso de voz, não ia com a cara dela. Ela não desconfiava que fosse pelo seu trabalho, pela reza, pela enganação, dizia o genro, que a considerava bruxa, feiticeira. Mesmo assim, naquele dia ele tentou ouvir as explicações da sogra sobre o trabalho de dona Flora, mulher competente e de resultados extraordinários alcançados com o ato de benzer e curar os que sofrem. Qualquer doença, desde que não seja necessária cirurgia, a velha Flora cura o corpo e a alma, pela fé, enfatizava dona Eleontina. Não importa se mau-olhado, espinhela caída, erisipela, cobreiro, febre, tristeza, míngua, ar na cabeça, ou quebranto, ventre caído, peitos abertos, ramo, sol na cabeça, nervo triado, engasgo, ferida de boca e até briga de marido e mulher, a velha rezadeira sempre tem uma reza de cura, concluiu a sogra.
O genro, agora atento pergunta para a “curandeira”:
— Com quem a senhora aprendeu esse ofício?
A resposta veio como raio de relâmpago:
— Os gestos e rezas nunca são ensinados ou aprendidos, e sim revelados pelo divino. Minha mãe aprendeu de sua mãe e assim “patrasmente”, apenas sobre as prantas que deve ser usada, completou Flora, já achando que ganhara mais um cliente.
O genro, cada vez mais curioso deu continuidade ao interrogatório:
— Para que serve esse montão de matinhos que a senhora trás dentro dessa sacola?
— São prantas do bem, que serve para curar, Eu pego o ramo certo para o mal que deve deixá o corpo do doente, faço o sinal da cruz nele e se a pranta muchá, é porque as folhas pegaram o espírito maligno que infernizava o doente. Então é só queimá a pranta ou jogar no mar ou rio e deixá ela ir simbora.
— Então esses conhecimentos vêm de seus antepassados e foram transmitidos oralmente pelas gerações? - perguntou o genro.
Analfabeta de pai e mãe, dona Flora não entendeu a pergunta e só balançou a cabeça, afirmativamente. Cada pergunta deixava a mulherzinha mais encafifada e pensativa: será que ele qué aprendê comigo? Será que ele vai mandá me prendê?
Não era essa intenção do genro de dona Eleontina. Ele só queria se inteirar daquela prática que continuava a ter seguidores e crentes convictos de sua eficácia. O homem de voz macia agora tinha certeza que sua esposa vinha submetendo seus filhos às rezas daquela senhora. Algumas vezes quando um de seus filhos pequeninos se encontravam de olho baixo, sonolento, com dor na barriga, sem razão aparente, ela dizia que a criança estava com mau-olhado. De volta da casa da sogra a criança estava completamente esperta. Ao perguntar o que acontecera apareciam sempre estórias inventavas, estórias sem pé nem cabeça. Que fora a visita que havia feito à avó da criança.
Dona Flora era senhora simples, não cobrava pelos trabalhos de cura, pois se considerava possuída de dom divino especial, mas sempre ganhava algum trocado de suas consulentes. Era assim que vivia, viúva, sem filhos e outros familiares, não contava com dinheiro vindo de mais ninguém. Mesmo assim dizia ser pessoa feliz, levava a vida sorrindo, sem dentes, não tinha vergonha disso. Só não gostava quando comia carne mais dura, essa observação era, quase sempre, acompanhada de sonora gargalhada.
Querendo saber mais sobre a bruxa, a feiticeira e suas práticas, o genro perguntou se ela apenas rezava? Se não usava raízes e ervas para preparar remédios, como garrafadas, xaropes, chás e lambedores que servem para curar diferentes males?
Dona Flora, achando que aquele homem sabia demais sobre suas práticas ficou calada por alguns minutos. Depois, calmamente começou a responder:
— Eu uso mais as prantas para curá: arruda, pinhão-roxo, vassourinha e outras que eu encontro por. Se o doente ta muito doente eu uso outras maneira de curá esse doente, pois aprendi muita coisa vendo minha mãe usá. Eu sempre estou pronta para tirá as afrições físicas, de existênça e do espírito, completou Flora, fazendo-se de bastante entendida no assunto. E completa:
— Quando eu era mais moça, no interior, eu fazia até parto, concluiu orgulhosa.
Querendo mais explicações sobre o serviço e seus resultados, o genro pediu para a velha senhora demonstrar o seu modus operandi.
Uma criança, que se encontrava ali desde a chegada repentina do homem elegante, para ser rezado por dona Flora, foi chamada até o local onde todos estavam reunidos. A menininha estava realmente combalida devido ao grau de febre que apresentava. Imediatamente a rezadeira iniciou seus trabalhos de cura, fazendo gestos, recitando jaculatórias e palavras que aparentemente não guardavam vínculo, união, ligação entre elas ou ideias de coerência. Fazendo o sinal da cruz repetidas vezes, dançando e rodopiando animadamente, balançando o galho de planta cuidadosamente escolhido entre outros contidos em sua sacola de plástico, sua expressão corporal dava ao ambiente clima de misticismo, proporcionando aos presentes grande poder de sugestão.
Sabedora de que a criança estava com mau-olhado, confessado pela mãe, a rezadeira dizia:
— Com dois te botaram, com três eu te curo na graça do divino Espírito Santo.
Outras palavras foram ditas em voz alterada, mas completamente incompreensíveis aos presentes. Todos presenciavam aquele espetáculo e ninguém batia uma sequer pestana, tal a expectativa para o resultado. De repente, a criança que se encontrava quase desfalecida no colo da mãe abriu um largo sorriso, fez gesto como querendo bater palma e ensaiou tentativa de ficar de pé. A mãe, chorando, atendeu a vontade da filha, pondo-a de pé. O alívio foi geral e todos riram. Alguém deixou cair algumas lágrimas de emoção. O genro, que não esquecera porque deixara o trabalho mais cedo falou que a forte dor de cabeça que estava sentindo passara completamente.
Para ele, a dúvida persistia:
— Será que fui alcançado pelas rezas de dona Flora?
Fortaleza, 2 de fevereiro de 2015