CHEIRO DE SAUDADE
Para mim, o olfato é um excelente ativador cerebral: faz-me recordar acontecimentos de tempos passados, infância, adolescência e juventude, fatos ocorridos há décadas. Vou narrar três casos que entre outros são os mais marcantes.
Iniciando pelo mais próximo, o cheiro de grama cortada no dia. Hoje, quando passo em um local em que acabaram de aparar a grama e sinto aquele cheiro gostoso de grama cortada, imediatamente volto no tempo em aproximadamente 35 anos, na minha juventude, quando ainda morava e trabalhava na Fazenda São Paulo em Presidente Alves.
Num lugar alto, bonito, bem extenso, com uma pastagem de grama mato grosso, ou gramão como é popularmente conhecida, o patrão decidiu formar um pasto melhor para o gado; então, mandou tombar a terra e plantar milho, e quando este estava “embonecando”, ou seja, formando as espigas, foi plantada no meio da lavoura a grama braquiária.
Naquele tempo, essa grama não era comum como hoje na região; por isso, as mudas foram compradas de uma fazenda na região de Lins, que ficava aproximadamente 70 quilômetros de distância, sendo gastos muitos dias de trabalho para plantá-las entre as linhas do milho por toda a lavoura.
Passados alguns anos, o pasto estava todo formado; no verão, a grama verde, bonita e bem encorpada foi cortada para fazer feno, armazenar e servir como alimento para o gado no inverno. O tempo de seca se agravava mais quando ocorria geada, pois queimava as pastagens. A falta de chuva deixava o gado com pouco pasto, e como não dava para todos, os mais fracos eram separados num piquete e tratados com o feno.
Para fazer o feno, primeiro ia um trator com uma roçadeira e cortava a grama; quando esta estava murchando, era usado um equipamento com um eixo e duas grandes rodas, mas sem aro, somente os raios, umas varetas de ferro, que rodando, enleiravam, deixando-a parecer um longo cordão.
Em seguida, outro trator com uma máquina, que passava em cima da leira, recolhia a grama, prensava e soltava um fardo de aproximadamente 80 cm de comprimento por 40 de largura e 30 de espessura, já amarrado com um cordinha de sisal.
Mas onde entra a saudade nisso tudo? É o seguinte: depois de os fardos prontos, era hora de guardá-los num barracão de madeira que havia próximo ao local; então, vinha um caminhão com alguns ajudantes para fazer o transporte e eu estava entre eles.
Eu trabalhava o dia todo sentindo aquele cheiro de grama cortada, que hoje representa o cheiro de juventude, quando tudo era alegria e animação; principalmente por sermos jovens, efetuávamos o trabalho, com muitas brincadeiras, risadas, falávamos de tudo, das paqueras, dos sonhos, dos receios, de tudo que povoava nossas mentes na época. E para encerrar, à tarde, quando íamos embora, passávamos pela cidade, parávamos num bar para tomar uma cachacinha e conversar um pouco mais.
O segundo caso foi o seguinte: um dia, passeando em minha cidade natal, fui visitar a igreja católica, matriz de Santa Cecília, situada no centro da cidade, com uma belíssima praça à sua frente. Entrei e, depois de uma breve oração, passei a olhar tudo, o altar, as imagens, umas colunas em arco, altas, trabalhadas, muito bonitas; tudo isso me era familiar. Depois, saindo pelo corredor lateral direito, antes de chegar à porta da saída, parei num pequeno cômodo, onde havia guardadas muitas imagens de santos antigas.
Chegando próximo às imagens, senti um cheiro, que, não sei se o leitor já sentiu, é característico de objetos antigos.
Aquele odor transportou-me, em recordações, para aproximadamente 40 anos atrás, quando, aos domingos à tarde, uma amiga e eu íamos à igreja participar das aulas de catecismo, como eram chamadas na época, que eram realizadas no salão paroquial, no fundo da igreja.
Naquele salão, havia, guardados, bancos de madeira, cadeira e muitas imagens de santos antigas, provavelmente algumas daquelas que vi nesse dia estavam lá, e eu passava a tarde toda sentindo aquele cheiro.
Hoje quando vou a Presidente Alves rever a família e os amigos, sempre que posso, vou à igreja e disfarçadamente passo bem perto daquelas imagens para sentir o cheiro de infância, de adolescência.
O terceiro caso e mais antigo se refere ao cheiro de couro, muito comum em arreios para animais de trabalho. Aqui em Marília, onde moro atualmente, há uma cooperativa que vende produtos agrícolas como: adubos, venenos, remédios veterinários, ferramentas, arreios de couro para animais, selas etc.
De vez em quando dou uma passadinha lá, faço de conta que estou procurando algum produto ou verificando preços e aí passo na seção de arreios só para sentir o cheiro do couro.
Aquele cheiro de couro para mim é cheiro de infância, traz-me recordações de quase 50 anos atrás, quando morávamos numa casa de madeira, construída em cima de alguns troncos também de madeira; que ficava próxima ao rancho das carroças e a mangueira dos burros.
Meu pai era carroceiro e, no fim da tarde, ele passava em casa, me colocava na carroça para acompanhá-lo no último trabalho do dia, guardar a carroça, soltar e tratar os animais. O rancho era dividido com uma garagem, onde várias carroças eram guardadas de fasto; um arame grosso pendia do teto com uma argola para prender no varal e as manter suspensas.
No fundo de cada repartição, havia um quartinho para guardar os arreios; eu entrava ali e sentia aquele cheiro forte de couro, principalmente quando tinha arreios novos.
São relatos simples do cotidiano de pessoas da zona rural, nas décadas de 1960 e 70. Os três casos têm em comum o cheiro que me leva a recordar momentos bons, porque a vida na roça era às vezes sofrida, mas nem por isso triste. Quando se é criança, adolescente ou jovem, tudo tem mais cor, a gente tem uma vida toda pela frente; olhamos só para o futuro, fazemos planos.
Hoje, passados dos 50 anos, não temos muitos planos a fazer, nem aquele infindável horizonte para contemplar, só temos um longo passado para recordar e sentir saudades.
Existem muitas ocasiões que nos levam ao passado: ouvir uma música antiga, rever uma cena de um dia de chuva, encontrar um objeto antigo que fez parte de nossa vida, mas eu quis falar sobre o que, nesses três casos, me marcou muito: o cheiro de saudade.
Glossário:
de fasto = de marcha ré
mangueira = curral dos burros
Iniciando pelo mais próximo, o cheiro de grama cortada no dia. Hoje, quando passo em um local em que acabaram de aparar a grama e sinto aquele cheiro gostoso de grama cortada, imediatamente volto no tempo em aproximadamente 35 anos, na minha juventude, quando ainda morava e trabalhava na Fazenda São Paulo em Presidente Alves.
Num lugar alto, bonito, bem extenso, com uma pastagem de grama mato grosso, ou gramão como é popularmente conhecida, o patrão decidiu formar um pasto melhor para o gado; então, mandou tombar a terra e plantar milho, e quando este estava “embonecando”, ou seja, formando as espigas, foi plantada no meio da lavoura a grama braquiária.
Naquele tempo, essa grama não era comum como hoje na região; por isso, as mudas foram compradas de uma fazenda na região de Lins, que ficava aproximadamente 70 quilômetros de distância, sendo gastos muitos dias de trabalho para plantá-las entre as linhas do milho por toda a lavoura.
Passados alguns anos, o pasto estava todo formado; no verão, a grama verde, bonita e bem encorpada foi cortada para fazer feno, armazenar e servir como alimento para o gado no inverno. O tempo de seca se agravava mais quando ocorria geada, pois queimava as pastagens. A falta de chuva deixava o gado com pouco pasto, e como não dava para todos, os mais fracos eram separados num piquete e tratados com o feno.
Para fazer o feno, primeiro ia um trator com uma roçadeira e cortava a grama; quando esta estava murchando, era usado um equipamento com um eixo e duas grandes rodas, mas sem aro, somente os raios, umas varetas de ferro, que rodando, enleiravam, deixando-a parecer um longo cordão.
Em seguida, outro trator com uma máquina, que passava em cima da leira, recolhia a grama, prensava e soltava um fardo de aproximadamente 80 cm de comprimento por 40 de largura e 30 de espessura, já amarrado com um cordinha de sisal.
Mas onde entra a saudade nisso tudo? É o seguinte: depois de os fardos prontos, era hora de guardá-los num barracão de madeira que havia próximo ao local; então, vinha um caminhão com alguns ajudantes para fazer o transporte e eu estava entre eles.
Eu trabalhava o dia todo sentindo aquele cheiro de grama cortada, que hoje representa o cheiro de juventude, quando tudo era alegria e animação; principalmente por sermos jovens, efetuávamos o trabalho, com muitas brincadeiras, risadas, falávamos de tudo, das paqueras, dos sonhos, dos receios, de tudo que povoava nossas mentes na época. E para encerrar, à tarde, quando íamos embora, passávamos pela cidade, parávamos num bar para tomar uma cachacinha e conversar um pouco mais.
O segundo caso foi o seguinte: um dia, passeando em minha cidade natal, fui visitar a igreja católica, matriz de Santa Cecília, situada no centro da cidade, com uma belíssima praça à sua frente. Entrei e, depois de uma breve oração, passei a olhar tudo, o altar, as imagens, umas colunas em arco, altas, trabalhadas, muito bonitas; tudo isso me era familiar. Depois, saindo pelo corredor lateral direito, antes de chegar à porta da saída, parei num pequeno cômodo, onde havia guardadas muitas imagens de santos antigas.
Chegando próximo às imagens, senti um cheiro, que, não sei se o leitor já sentiu, é característico de objetos antigos.
Aquele odor transportou-me, em recordações, para aproximadamente 40 anos atrás, quando, aos domingos à tarde, uma amiga e eu íamos à igreja participar das aulas de catecismo, como eram chamadas na época, que eram realizadas no salão paroquial, no fundo da igreja.
Naquele salão, havia, guardados, bancos de madeira, cadeira e muitas imagens de santos antigas, provavelmente algumas daquelas que vi nesse dia estavam lá, e eu passava a tarde toda sentindo aquele cheiro.
Hoje quando vou a Presidente Alves rever a família e os amigos, sempre que posso, vou à igreja e disfarçadamente passo bem perto daquelas imagens para sentir o cheiro de infância, de adolescência.
O terceiro caso e mais antigo se refere ao cheiro de couro, muito comum em arreios para animais de trabalho. Aqui em Marília, onde moro atualmente, há uma cooperativa que vende produtos agrícolas como: adubos, venenos, remédios veterinários, ferramentas, arreios de couro para animais, selas etc.
De vez em quando dou uma passadinha lá, faço de conta que estou procurando algum produto ou verificando preços e aí passo na seção de arreios só para sentir o cheiro do couro.
Aquele cheiro de couro para mim é cheiro de infância, traz-me recordações de quase 50 anos atrás, quando morávamos numa casa de madeira, construída em cima de alguns troncos também de madeira; que ficava próxima ao rancho das carroças e a mangueira dos burros.
Meu pai era carroceiro e, no fim da tarde, ele passava em casa, me colocava na carroça para acompanhá-lo no último trabalho do dia, guardar a carroça, soltar e tratar os animais. O rancho era dividido com uma garagem, onde várias carroças eram guardadas de fasto; um arame grosso pendia do teto com uma argola para prender no varal e as manter suspensas.
No fundo de cada repartição, havia um quartinho para guardar os arreios; eu entrava ali e sentia aquele cheiro forte de couro, principalmente quando tinha arreios novos.
São relatos simples do cotidiano de pessoas da zona rural, nas décadas de 1960 e 70. Os três casos têm em comum o cheiro que me leva a recordar momentos bons, porque a vida na roça era às vezes sofrida, mas nem por isso triste. Quando se é criança, adolescente ou jovem, tudo tem mais cor, a gente tem uma vida toda pela frente; olhamos só para o futuro, fazemos planos.
Hoje, passados dos 50 anos, não temos muitos planos a fazer, nem aquele infindável horizonte para contemplar, só temos um longo passado para recordar e sentir saudades.
Existem muitas ocasiões que nos levam ao passado: ouvir uma música antiga, rever uma cena de um dia de chuva, encontrar um objeto antigo que fez parte de nossa vida, mas eu quis falar sobre o que, nesses três casos, me marcou muito: o cheiro de saudade.
Glossário:
de fasto = de marcha ré
mangueira = curral dos burros