Zelinda
Em vários momentos de nossas vidas buscamos relembrar passagens que representaram momentos agradáveis. Momentos passados em praias, rios, montanhas, campos, cidades, em casa, geralmente em companhia de pessoas de nossa estima.
Ainda adolescente, morando sozinho em São Paulo por motivo de estudo, conheci uma garota muito interessante, de nome Zelinda (?), gaúcha, realmente linda, mas de idade superior à minha. Nunca fui preocupado com esse detalhe, pois estava apenas a fim de me divertir.
Meu local de moradia, por questões financeiras, era um dos edifícios mais visados pela polícia da região do Mercado Central, porque abrigava garotas de programa, boêmios, cantores da noite, artistas de circo, estudantes, comerciários, bancários, secretárias, alguns indivíduos sem qualificação, homossexuais, brasileiros, japoneses, chineses, brancos, amarelos, pretos, velhos, homens, mulheres, crianças, uma salada de cultura que se prestava muito bem a antropólogos sociais, para desenvolver temas de estudos sobre o homem e a humanidade de maneira totalizante, isto é, em todas as dimensões do conhecimento.
Nesse caldeirão de gente, distribuída em 27 andares e uns 20 apartamentos – kitinet - por andar, abrigava mais de três mil pessoas. Para atender a essa multidão de gente havia quatro elevadores, que funcionavam ininterruptamente durante 24 horas. Às vezes eles resolviam pifar, um, dois, três ou todos de uma vez só.
Foi num desses momentos, quando três dos quatro elevadores estavam parados que tive o primeiro contato com Zelinda, moça com pouco mais de 1m60cm de altura, bem vestida, cabelos pretos, olhos idem, magra, mas de corpo bem delineado, sorriso brilhante e arcada dentária perfeita. Essa minha radiografia foi instantânea, tal a impressão que ela me causou.
Eu estava chegando de uma festa de formatura, paletó na mão, cara de cansado, já eram quatro horas da madrugada, eu havia dançado quase a noite toda e ao me aproximar do elevador que estava funcionando, deparei-me com aquela garota, que parecia ter vindo de uma festa também. Estávamos apenas nós dois, todo o prédio dormia ou fazia de conta. O silêncio era total, apenas o ranger do velho elevador chegava aos nossos ouvidos, isso não nos perturbava, em mim ainda soavam as músicas tocadas durante o baile. Passei a cantarolar a que mais tocou, “Não quero ver você triste assim”:
O que é que você tem?
Conta pra mim
Não quero ver você triste assim
Não fique triste o mundo é bom
A felicidade até existe
...
Zelinda olhou para mim e sorriu. Eu, pouco envergonhado por ter incomodado o silêncio dela falei:
— Desculpe-me, não queria incomodar o seu silêncio!
E ainda sorrindo e olhar fixado em mim, falou:
— Não há o que desculpar, eu gosto dessa música e estava cantando-a baixinho também. Estava em um barzinho com amigos e ela foi tocada insistentemente. Parecia que a pessoa que colocava os discos para tocar estava apaixonada. Não é coincidência estarmos cantando a mesma música?
Sem jeito eu respondi:
— Eu passei a noite toda a ouvi-la. Eu gosto de Roberto Carlos e tenho quase todos os discos dele. – eu disse isso já com segundas intenções.
— Que legal, também gosto, só não tenho toca-discos no meu apartamento.
Foi a deixa para eu convidá-la a ir até o meu apartamento. Primeiro perguntei se ela morava sozinha e a resposta foi positiva. Depois fiz a pergunta mais importante:
— Você não gostaria de num sábado ou domingo ver o que tenho de discos?
Não tinha reparado em que botão do elevador ela havia apertado para levá-la até ao andar de seu apartamento. E acho que nem ela percebeu isso em relação ao meu caso. O elevador chegou ao 24º enquanto me preparava para sair, ela tomou minha frente e saiu. Eu pensei que o convite tinha sido aceito imediatamente e a alegria se espalhou pelo meu ser. Então veio a pergunta:
— Você também mora neste andar?
— Sim, eu moro, respondi. No 2415, completei.
— Eu moro no 2420, virando à esquerda, a terceira porta. Boa noite, mais tarde terei que trabalhar. Outra coincidência morarmos no mesmo andar, não?
A decepção foi enorme. Esperava passar o resto daquela madrugada em companhia daquela bela garota. Nem mesmo respondi à sua última pergunta.
Às 7h30 nós dois, novamente em frente ao elevador, o único ainda a continuar funcionando. Saudamos-nos e ela fez uma observação:
— Já de pé? Pensei que você só estudasse, e à tarde.
— Eu também trabalho e só estudo à noite.
— O seu convite para ver e ouvir seus discos encontra-se de pé?
— Claro, sou homem de palavra - respondi-lhe de peito estufado e sorriso nos lábios, reação natural de um jovem de 20 anos. Era a primeira vez que receberia uma mulher em meu apartamento.
No sábado seguinte, logo cedo arrumei o local, desci para comprar algumas coisas para degustar, uma garrafa de vinho barato e me preparei para receber Zelinda. Esta hora demorou, a expectativa durou até as 18 horas. Eu já estava desesperado. Algumas vezes ensaiei ir até o apartamento dela e tirar satisfação pela demora. Felizmente não fiz isso, ela não tinha obrigação de ir até ao meu apê.
A chegada da convidada me deixou extasiado, ela estava mais linda do que da primeira vez que a vi. A moça entrou, vistoriou o local e disse que eu não era bagunceiro. Como a primeira impressão é a que fica, fiquei feliz com a observação.
Ouvimos canções de Roberto Carlos por horas, experimentamos o vinho, aprovado por Zelinda, degustamos o que foi comprado pela manhã e fizemos sexo. Foi fantástico, indescritível. Ficamos na cama até as doze horas do domingo, fomos ao seu apartamento, ela esquentou o almoço, fomos para a cama, fizemos sexo novamente e o dia terminou. Durante esse tempo fiquei sabendo que ela tinha 26 anos, era sustentada pelo dono da empresa de turismo para a qual trabalhava. Ele morava no Rio de Janeiro e só a visitava quando vinha inspecionar a loja de São Paulo. Isso acontecia a cada três semanas, chegava às sextas-feiras e voltava no domingo à noite. Algumas vezes chegava sem ela esperar. Parecia que era para se certificar que a sua teúda e manteúda não o traia.
Fiquei um pouco apreensivo, naquela idade o instinto supera a razão, governa os seres vivos em suas ações, à revelia de sua vontade. A razão, para a filosofia, é a faculdade em virtude da qual o ser humano é capaz de identificar conceitos e questioná-los. Inclinei-me pelo instinto, sem medir as consequências. Foram sábados e domingos de verdadeira satisfação carnal, até quando fui apanhado na cama do outro. Em acordo com o mantenedor, fui obrigado a me mudar do meu local de moradia. Nunca mais nos vimos.
Gilberto Carvalho Pereira
Fortaleza, 20 de março de 2015