A botija da Rua Antônio Augusto
Era o ano de 1957, precisamente na noite de dois de novembro, um sábado, dia de finados. O mundo encontrava-se na expectativa do lançamento, no dia seguinte, da cachorra Laika ao espaço a bordo do satélite soviético Sputnik II. Seria a primeira vez que um ser vivo iria ser elevado às alturas como experiência às futuras viagens espaciais.
O Senhor Aloisio, morador da Rua Antônio Augusto, na Aldeota, em Fortaleza, não estava preocupado com a história da cachorra Laika. Ele ouvia de um conhecido a intrigante história sobre a existência de uma botija enterrada no terreno em frente. Incrédulo, mas bastante interessado começou a fazer perguntas:
- Quem tem conhecimento dessa história? Como você ficou sabendo? Perguntou seu Aloisio, com a curiosidade aguçada.
- Minha mãe, respondeu Arnaldo. Ela me disse que minha avó havia sonhado que uma antiga moradora, já falecida há vários anos, pedindo para desenterrarem uma botija que seu marido havia enterrado sob uma árvore centenária em terreno ao lado da casa dela. Ela não ficaria sossegada enquanto isso não acontecesse.
Ajeitando-se na cadeira de balanço, para ficar mais confortável, o senhor Aloisio desfechou saraivada de perguntas, sem dar tempo para o seu interlocutor responder:
- O que a velha senhora disse que havia enterrado? Qualquer pessoa pode desenterrar essa botija? Como fazer isso? Quem achar será o dono? Vamos desenterrá-la? Você tem coragem?
Assustado com tanto interesse, Arnaldo suspirou fundo e disse:
- Vamos por parte: não sei o que tem enterrado; acho que qualquer pessoa pode desenterrá-la, só não sei se vai encontrar alguma coisa; se tiver alguma coisa lá, será de quem achar; a retirada da botija só pode acontecer exatamente à meia-noite; sim, eu ajudo o senhor a fazer o serviço, completou Arnaldo.
O senhor Aloisio era uma pessoa séria e respeitada por todos naquela rua. O terreno ficava a uns cem metros de sua casa e ocupava quase a quadra toda, cem metros quadrados. Apenas uma família residia no outro lado do terreno, em pequena área precariamente cercada. O resto do terreno era só mato, com algumas enormes árvores, por exemplo, mangueira (Mangifera indica L.), cajueiro (Anacardium), Bouganviles (Bougainvillea spectabilis Willd e Ficus sempre-verde (Ficus benjamina L.), esta última, deduziram os dois homens, seria a grande e centenária árvore sob a qual estaria enterrada a botija. Havia também alguns pés de mamão, que por terem crescidos rente ao baixo muro que circundava o terreno seus frutos eram conhecidos como “mamão-de-bosta”, dada a origem de suas sementes.
Para ter acesso ao terreno não haveria dificuldade, algumas trilhas já estavam construídas por curiosos, por aqueles que procuravam aliviar suas dores de barriga e por catadores de garrafas, panelas de alumínio e outros metais, ali jogados como lixo. Entretanto, ninguém se atrevia a adentrar à noite naquele matagal, diziam ser mal-assombrado. Até mesmo um dos filhos de seu Aloisio contava ter visto o diabo, o coisa ruim, quando tentava apanhar manga no território de lúcifer. O susto foi tão grande que o menino pulou o muro do terreno sem tocá-lo, correu até a sua casa e desmaiou.
Daquela conversa saiu o trato. Arnaldo ficara encarregado de conseguir as ferramentas da escavação, o senhor Aloisio das lanternas para clarear o local e outros apetrechos e procedimentos necessários ao sucesso daquela empreitada.
Um quarto para meia-noite, Aloisio, Arnaldo e um irmão deste pularam o pequeno muro do terreno e seguiram direto para o fícus. Constataram tratar-se de uma árvore com mais de 25 metros de altura, copa bastante larga e muitas raízes aparentes. A discussão que se seguiu foi por onde começar a escavação. Arnaldo lembrou que sua avó havia contado que a botija estaria enterrada na direção da quina do muro, lado direito à entrada da antiga casa, agora uma construção em ruínas.
- É aqui! - exclamou Arnoldo apontando para a área delimitada por duas grossas raízes aparentes.
- Vamos esperar mais dez minutos e começar a cavar, ordenou o senhor Aloisio.
Já preparado para o serviço, Arnaldo, à meia-noite em ponto deu a primeira enxadada no terreno, abrindo um sulco considerável. Homem de bastante força, aquele trabalhinho seria moleza. Outras tantas enxadadas foram sendo dadas, enquanto o irmão se encarregava de afastar o solo que saia do buraco, com uma pá. Cavaram por trinta minutos e nada de botija. O que surgiu foi uma grossa raiz, que para facilitar a retirada do solo foi cortada e levada dali. Já cansado e certo de que não encontraria botija nenhuma Arnaldo desistiu de cavar. A decepção foi grande e a quantidade de curiosos sentados no muro à espera da botija só aumentava.
O senhor Aloisio, percebendo que seriam alvo de troça resolveu pregar uma peça aos curiosos. Mandou buscar em sua casa um lençol grande, enrolou o pedaço de raiz retirado da planta e deu por encerrado os trabalhos. A ordem era para levar o pedaço de raiz para a sua casa, com muito cuidado e deixando transparecer que aquilo era muito pesado. Arnaldo e o irmão cumpriram a ordem e calados atravessaram a cambada de espectadores, havidos para saber o tamanho da fortuna achada.
No outro dia o assunto era a botija arrancada do terreno, todos queriam saber o que ela continha, mas os três companheiros de aventura nada falavam. O senhor Aloisio, como era de seu costume e para isso já havia contratado um pintor, mandou pintar sua casa para as festas de fim de ano. Isso era indício de que ele havia achado mesmo uma botija, pois reza a lenda que a primeira coisa que o agraciado deveria fazer era se mudar do local ou pintar a sua casa. Dos outros dois, por morarem longe da Antônio Augusto e completamente desconhecidos dos residentes desta rua, nada se ficou sabendo depois daquela noite.
Na mercearia da esquina o senhor Aloisio, depois de muita insistência do Zé Moco, proprietário do estabelecimento, mostrou duas pequenas joias de ouro que tinha pertencido à sua avó, dizendo que encontrara centenas delas dentro da botija retirada na noite de finados. Espantado, o Zé Moco pediu para segurá-las em sua mão, o que foi negado com a justificativa de que se outra pessoa as pegasse, as que estavam guardadas em casa virariam areia.
Por muito tempo essa história fez parte dos comentários da Rua Antônio Augusto e o senhor Aloisio adquiriu mais respeito entre os comentaristas.
Gilberto Carvalho Pereira
Fortaleza (CE), 19 de dezembro de 2014