Um Jardim
E, um dia, dei comigo livre. Nem truques nem traições na gestão do trabalho. Nem subserviência nem necessidade de ser gentil com o prepotente que dirigia a Direção. Há quem se aposente e passe a sofrer todas estas ausências. Sem nada para fazer, choram a falta das antigas canseiras, dos agravos do patrão, a saudade dos colegas. Eu não, contaste. Acordo sempre cedo mas já não faço a barba, não visto o fato nem, muito menos, uso gravata. Gosto de roupas velhas, confortáveis, de sapatos já deformados pelo pé, de sair para descobrir muitas coisas de que nem suspeitava que existissem. Sou divorciado o que me garante as escolhas sem ter de pleitear pelo que gosto, me apetece ou quero. Estou são e envelheço devagar. Gosto de pensar e de conversar mas, as mais das vezes, falo com os meus botões, com os cães e gatos da vizinhança, com os melros e os pardais, com as árvores. Sinto que, de alguma maneira, me aceitam como um deles. Parecida receção só encontro em gente sem abrigo, por causa dos cabelos e das barbas, do ar aparentemente desleixado. Circulo sempre por aqui. Compro a comida, bebo o café, alongo os dias com o pessoal das hortas e recolho cedo para descansar. Ontem vi-a. É viúva, mora sozinha naquela casa branca e, ainda que pareça muito nova, tem já a sua maturidade. Abordou-me pensando que falava com o tipo que arranja os jardins e os quintais. Somos parecidos. A diferença maior é que eu tomo banho todos os dias. As outras só se percebem na conversa. Disse-lhe que sim, que iria arranjar o jardim, limpar e arrumar o ferro velho que tem no quintal. Bom vai ser vê-la de perto, confessaste antes de esfregar as mãos para uma labuta que te era estranha. E, sem sequer pensar nos utensílios que não tinhas, despediste-te e foste, com alegria e muita coragem, enfrentar pela primeira vez, um jardim.