PANELA SOLIDÁRIA

PANELA SOLIDÁRIA

BETOMACHADO

O ponto de ônibus abrigava tanto os ávidos por chegar aos seus destinos, sem estresses, quanto os estudantes do Colégio Albert Sabin que iam saindo sem pressa nenhuma, aos borbotões. O sol estava de fritar ovos no asfalto. A sombra, generosamente, oferecida pelo viaduto Alim Pedro amenizava a sensação de calor. Os termômetros acusavam 40 graus, mas parecia 50 ou mais.

Alheios a algazarra promovida pelos chamadores de passageiros de vans e kombis dois casais moradores de rua, estabelecidos há algum tempo sob o viaduto, ou energizavam o fogão de lenha improvisado com dois blocos de concreto e dois pedaços de vergalhão de obra ou dormiam o sono dos justos.

Tiãozinho e Dalila se encarregavam de preparar o rango. Era uma terça feira e ainda havia, pelos cantos, escondidos atrás de pilares, fora do alcance dos olhos dos Garis, boa quantidade de caixotes, resquícios da feira dominical de CAMPO GRANDE. Uma banqueta com tampo de compensado e de fórmica suportava duas vasilhas de plástico, uma contendo arroz, outra quase cheia de sopa de frango. Mas a preocupação do casal, agora, era com uma panela preta sobre o fogão de lenha improvisado. Tiãozinho desmontava os caixotes e quebrava as ripas com gestos tão primitivos que, por vezes, se parecia com personagens pré- históricos. Ali estava um indivíduo desprovido de todos os dotes civilizatórios que, por ventura, tenha recebido no passado. Para manter acesas as labaredas do fogão improvisado ele se utilizava até dos dentes para fazer dos caixotes inúteis ripas-lenha. E tome fogo! A panela preta cada vez mais enegrecida pela fumaça começa denunciar seu conteúdo. O vento espalha, igualitariamente, o olor do feijão cozido que a panela preta insistira em ocultar, até que a memória dos olfatos desmorona o tal segredo.

Dos móveis e utensílios elencados no rol de patrimônios da dupla de casais o que lhes fora mais caro eram dois carrinhos de supermercados, sabe-se lá, como foram adquiridos, que lhes servem de armários, de mesas, de aparadores; pau pra toda obra; guardam todos os apetrechos usados no dia a dia; os descartáveis, óbvio, vão ficando pelo chão, sem a menor cerimônia, nem pudor de sujar seu particular mundinho.

A dureza da superfície do solo é amortecida com surrados carpetes e vários cobertores esmolambados, mal cheirosos e mofados, dispostos ao redor das pilastras cilíndricas do viaduto. Ali os quatro descamisados, desamparados pela pétrea sociedade capitalista arriam, noite após noite, o cansaço de seus corpos e um fardo de desejos cuja embalagem ostenta, desbotada, a palavra ESPERANÇA. É o quarto de dormir daqueles pobres coitados. Que DEUS os livre de um rigoroso inverno. Seria a aproximação do fim. O verão carioca oferece muito mais recursos de sobrevivência aos que tem a rua como lar. Não aquele lar idealizado em algum momento da vida... Lar, doce lar... Mas, como toda doce limonada provem de um limão azedo, aquelas criaturas, desprovidas de qualquer atenção ou assistência social, vão se ajeitando, se auto-ajudando e demonstrando um sentimento muito raro hoje em dia: a solidariedade.

Dalila levantava e baixava os óculos, num gesto automático, para enxugar o suor e esfregar os olhos rubros, sacrificados pela fumaça impiedosa. E quanto maior a ardência, mais ela gritava palavrões impublicáveis que, para os ouvidos de seus pares mal passavam de interjeições de desagrado. Mas os estudantes aglomerados em torno do quiosque plantado irregularmente no ponto de ônibus deliravam esfuziantemente, tamanha era a quantidade de palavras chulas e cabeludas gritadas por Dalila. Um enorme fardo de papelão, amarrado com fitas de sisal servia de tampão protetor de um dos carrinhos de supermercados. Dalila derrubou-o com a facilidade comparada a de um estivador. Retira de seu armário improvisado algumas vasilhas de plástico e alguns talheres.

Aproxima-se a hora do toque da campainha, anunciando o recreio dos alunos do “Zé Gotinha”, como é, carinhosamente chamado o Colégio Albert Sabin. Com uma das mãos Tiãozinho esfrega os olhos e com a outra sinaliza para Dalila acordar os amigos, que sonhavam com anjos que os tirariam daquela situação de penúria.

Dalila interrompe o sono, mas não os sonhos da dupla. Até porque muitos de seus sonhos eram comuns entre eles. Mas a metodologia usada por Dalila para despertar os amigos não era nada ortodoxa. Berros e batucadas em tampas de panelas, gritando os nomes dos infortunados. O alarido de Dalila chama a atenção de passantes motorizados e pedestres. O protagonismo da cena é todo dela. Até os coadjuvantes se curvam diante do carisma que ela traz à flor da pele... Quem teria sido esta pessoa, este ser tão reduzido à condição de mendicância e ou de indigência, aos olhos dos que se julgam normais?... Que posição teria ocupado na sociedade esta mulher, hoje maltrapilha, desbocada, desdentada, com a auto-estima quase tangenciando o zero? Quem pode fornecer alguma dica são seus óculos de grau, discretos mas com poder de definir semblantes.

Se já não estivessem sido acostumados àquela balbúrdia Chico e Margarida acordariam irritadíssimos; com o humor zerado... Nem a deficiência física, tornando sofrível a locomoção de Chico tirava-lhe a tranqüilidade, a passividade. Mesmo assim trazia junto a seus apetrechos um cajado de ipê que usava tanto quanto o carrinho de supermercado para ajudar o equilíbrio do seu corpo.

Margarida mostrava uma fisionomia bem mais velha que a dos outros; corpo e rosto carcomidos pelo tempo e pelas sofreguidões que a vida vem lhe impondo. Seu estado físico é deprimente. Ao despertar, senta-se e recosta-se na base do pilar que identifica o quarto de dormir do grupo. Passa as mãos na face enrugada, como se pretendesse esticar a pele mulata, porém o máximo que consegue é secar o suor que escorre para o pescoço marcado por rugas verticais, mais parecidas com barbatanas de perus. Depois de uma observação mais atenta pode se constatar que essas rugas servem para disfarçar as linhas de caraca, frutos de poeira e suor acumulados há dias. A falta de auto-estima provoca a supressão da higiene corporal, assim como muitos princípios éticos.

Chico dá a mão a sua companheira e a levanta com alguma dificuldade. O ponto do ônibus está cada vez mais cheio. Margarida surpreende a todos. Quando se imaginava que ela fosse em direção ao fogão de lenha improvisado e da banqueta de tampo de fórmica ela toma rumo contrário. Senta numa pilha de postes de iluminação avariados, depositados ali pela concessionária de energia elétrica da cidade, arria as calças, sem nenhum pudor ou culpa e descarrega todos os líquidos de sua bexiga, represados até então. A demora daquela idosa em se recompor promoveu uma explosão de gritos e gargalhadas no ponto de ônibus lotado de estudantes. Chico demonstra um certo descontentamento com a algazarra dos “espectadores”, e levanta seu cajado de ipê, numa tentativa de intimidar a galera. O tiro saiu pela culatra. O furdunço aumentou. Dalila e Tiãozinho assistiam a tudo comendo e bebendo com a maior naturalidade, tanto em relação à semi-nudez de Margarida, quanto a gritaria do pessoal do ponto de ônibus.

As vasilhas de plástico com sopa de frango e com arroz, sobre a banqueta de tampo de fórmica já estavam quase frias, mas a panela preta fumegava, expelindo uma fumaça branda por entre os amassados da borda da tampa, mesmo estando adormecidas as labaredas do fogão improvisado, cujas brasas dão lugar às cinzas esbranquiçadas, mantenedoras da temperatura daquele primitivo equipamento.

Dalila vai ao fogão improvisado, destampa a panela preta, coloca um pouco do feijão cheiroso em duas vasilhas de plástico; vai até a banqueta com tampo de fórmica e coloca arroz e sopa de frango. Gentilmente, leva para o casal amigo. O modo de degustar exibido pelo casal se assemelhava ao dos seres humanos mais primitivos imagináveis. Talheres eram dispensados. Utilizavam os dedos para conduzir a comida à boca, como os primatas. Gastaram um tempo recorde para “limparem” as vasilhas de plástico. Os ossos de frango com os extremos roídos foram jogados sobre a pilha de postes. Nenhuma preocupação com a proliferação de ratos e insetos.

Para alívio e sossego dos moradores daquela caverna ao ar livre, um ônibus da linha 822, para Vila Nova encosta e arrasta todo mundo. Sorte de Dalila e Tiãozinho que já estão tirando sua soneca pós refeição. As missões desse turno ficam a cargo de Chico e Margarida. O calor continua sufocante, mas as nuvens negras começam a se movimentar no sentido leste-oeste... Repentinamente um forte vento dá um prenúncio de tempestade. Chico coloca os carrinhos de supermercado numa posição de formar uma barreira que os defenda da chuva de vento.

Margarida recolheu todas as vasilhas usadas até aquele momento e guardou no fundo de um dos carrinhos, que agora servia de parede do quarto de dormir. Não se viu nenhum movimento de alguém lavando vasilhames antes de guardá-los, mas a desigualdade social e a crueza de vida produzidas e ostentadas pela sociedade capitalista, costumam compensar os menos favorecidos, dando-lhes uma imunidade biológica ainda não compreendida por aqueles aquinhoados de posses, pela sorte ou por méritos. Dificilmente vê-se um morador de rua aguardando atendimento médico nas filas de postos de saúde, hospitais públicos, ou a reclamar de gripes e resfriados, com a freqüência que os “normais” são acometidos. Os religiosos não precisam queimar suas pestanas para decifrar esse enigma... “DEUS dá o cobertor conforme o frio”... Os céticos, os ateus e os agnósticos têm suas convicções baseadas em teoria científicas. Mas, no frigir dos ovos, acho que todos chegam a uma explicação satisfatória ou convincente, pois o mais importante que a resposta é a essência da pergunta. O enigma permanece e a imunidade dos desfavorecidos continua livrando-os de mais alguns infortúnios, que os levariam a um processo natural de extermínio de classe, que desequilibraria o eco-sistema urbano, com poucas possibilidades de reversão.

Tal observação desses fatos se tornou possível aos meus olhos devido a uma espera que tive de, aproximadamente, duas horas, dentro de um carro estacionado diante desses personagens, enquanto minha esposa “lutava” lá dentro do colégio por uma vaga de matrícula para classe de alunos adolescentes ainda não alfabetizados, frase que vale um tema, tema que vale uma discussão, um debate profundo, por conta do aumento vertiginoso do número de estudantes presos a essa condição. Creio que os administradores públicos ainda não se deram conta da real dimensão desse problema. A deixar a progressão dessa anomalia por conta da natureza, como se educar fosse menos importante do que plantar ramas de batata doce, o que vamos colher num breve futuro será o vergonhoso retorno ao nível do analfabetismo em massa; chaga que já deveria ter sido cicatrizada em todo o corpo do país.

O olhar humano é voraz na busca pela contemplação do belo, mas o pestanejar, vez por outra, se depara com o inusitado e registra-o, como se belo fosse. É o que se deu comigo diante da situação precaríssima de quatro pessoas que, mesmo em estado de abandono, conseguem sobreviver exibindo ações solidárias, pouco percebidas em ambiente diferente daquele, onde elas dividem suas dores sem queixumes, seus sonhos adornados de esperança e alimentos feitos numa só panela, enegrecida pela fumaça do fogão de lenha improvisado. A cena de Dalila entregando as vasilhas de plástico com o feijão cheiroso, arroz e sopa de frango para os amigos Chico e Margarida é lapidar; simboliza a solidariedade dos que pouco têm com os que nada têm. Aquela panela preta serve de elo de ligação entre as mentes e as índoles ali misturadas sob a proteção de Deus e do velho viaduto Alim Pedro.

A expressão de felicidade que minha esposa trazia, ao atravessar a rua, vindo lá do “Zé Gotinha” me informava do seu êxito em relação à matrícula que, há vários dias, ela buscava. Sua estupefação se deu por não me encontrar dormindo. Justifiquei a ausência de sono contando a ela a historinha que acabam de ler.

Roberto Candido Machado
Enviado por Roberto Candido Machado em 10/03/2015
Código do texto: T5165462
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