Seu Manuel era um português trabalhador, sério, de poucos sorrisos e não admitia que se brincasse com ele. Em sua opinião homem não tem quer dar risinhos a toda hora. Naquela manhã ensolarada ele levantou-se contente. Era o dia mais feliz do mês: o dia de ir receber o seu pagamento. Sua alegria não era só pelo dinheiro, mas também porque era o dia de sua liberdade. Acordou cedo, varreu o quintal, deu comida pro Fedido, seu cachorro de estimação, ensinou duas ou três palavras para Melindroso, seu papagaio, e deu por encerrada suas tarefas domésticas. Agora sim, ia fazer a barba, tomar seu banho e botar o terno, como sempre fazia quando ia ao Centro, receber o pagamento. Aproveitaria para pagar algumas contas. Dona Maria - sua esposa amiga ou inimiga fiel, dependendo do dia – e sempre sua carcereira - não entendia porque ele tinha que fazer as suas compras nas lojas do Centro, quando poderia per-feitamente fazê-las nas filiais perto de casa. Ele, no entanto, sabia que essa era a única forma de passar um dia longe do seu jugo. Ela sempre queria saber aonde ele ia, a que horas voltaria e o que ia fazer. - Tenho que ir ao Centro pagar minhas prestações. Você sabe muito bem que sou fiel às lojas onde sempre comprava quando ainda estava na ativa. Agora que me aposentei não vou trair os vendedores que se tornaram meus amigos. Essa era a desculpa que sempre dava. Deu um beijo na mulher, sempre sentindo o bigode de dona Maria fazer-lhe cócegas, pegou o ônibus e foi. Recebeu o pagamento, pagou as contas, encontrou os amigos e passou o dia feliz. Quando chegou em casa, trazendo a goiaba de presente para a mulher – como sempre fazia no dia do pagamento - sentiu-se mal. Foi para o quarto, tirou a roupa e vestiu a camisa do Vasco, seu time do coração. Estava procurando a calça quando o chamaram dessa pra melhor, sem nenhum aviso prévio. Sim, a morte o pegou de surpresa e foi seminu que ele caiu na cama com a boca aberta e as partes expostas, numa posição um tanto humilhante para um homem sério. Só algumas horas depois a mulher o encontrou, metade do corpo na cama, metade fora dela. Depois da choradeira, normal numa ocasião semelhante, começaram a procurar uma roupa para vestir o defunto. Vestiram-no com uma calça marrom, uma camisa branca, sapatos e meias e consideraram-no bem vestido para a sua viagem final. - Nada disso! Exclamou dona Maria quando o viu vestido. Não é nada disso que ele queria. Certa ocasião eles haviam conversado sobre o assunto e ele lhe dissera que queria ir de terno e gravata, como se vestia nas grandes ocasiões. Sua vontade foi feita. Tiraram-lhe toda a roupa e colocaram o terno, com o qual ele havia saído. O velório foi feito, o morto enterrado e, só então dona Maria se lembrou do troco do ordenado que ele havia recebido. Mesmo pagando as contas sobrava o dinheiro para as despesas do mês. Procuraram por toda a casa e, só então, se deram conta de que, ao trocar a roupa do morto, o haviam vestido com a calça que ele tinha usado para ir ao Centro, receber o pagamento. Dona Maria todas as noites se lembra dele. Às vezes tem até a impressão de ouvi-lo colocando o urinol embaixo da cama. Nessa hora sempre exclama: Oh Manuel, que sacanagem me fizeste, levar contigo o dinheiro se aí, onde estás, não vais precisar. A entrada para ver o teu Vasco deve ser grátis! E dizendo “que Deus o tenha” cofia o bigode, vira pro lado e dorme.